*Cecília e Júlia são nomes fictícios
Era uma quinta-feira de fevereiro, três da tarde. Júlia, 13 anos, caminhava tranqüila pela Rua São João com seu dois irmãos e um colega, todos mais novos que ela (12, 10 e 08 anos, respectivamente). Iam para o colégio estadual onde estudam e que ficava bem pertinho dali, no coração do bairro do Aura, Município de Ananindeua, Zona Metropolitana de Belém.
Os irmãos de Júlia e o colega iam de bicicleta e a menina caminhava. Em um determinado momento, os meninos se distanciaram dela que, sem imaginar o que brevemente lhe aconteceria, ficou um pouco para trás.
Foi quando ele apareceu: vindo na direção contrária, também de bicicleta, cruzou com os meninos e, mais distante, chegou perto de Júlia e começou a atacá-la.
Primeiro ele a agarrou e jogou livros e cadernos no chão. Depois, enquanto chupava, lambia e mordia o pescoço da menina indefesa, as mãos que tentavam apalpar tudo, dizia que iria levá-la para o mato e que iria lhe “comer todinha”. A menina gritou e nenhum dos meninos, distantes já, escutou. Ela tentou escapar enquanto era arrastada para o matagal que ficava próximo, o homem que era bem mais forte, e sua sorte foi um dos meninos ter se virado e visto a cena nojenta.
Os pequenos, valentes, voltaram dispostos a enfrentar o violador, homenzarrão, e gritaram e disseram que iriam chamar socorro.
E o homem, covarde como são muitos dos homens, largou Júlia e disse: “hoje não te comi. Mas amanhã te pego e, com uma corda, te amarro e te como todinha”. E ele foi embora calmamente, como se nada tivesse acontecido, pedalando sua bicicleta pelas ruas do Aura.
Júlia teve forças somente para chegar ao colégio e desmaiar. Não conseguiu assistir às aulas e, sem dizer nada à professora e à diretora, voltou com seus irmão, todos pequenos, todos assustados, para casa.
Quando Cecília, a mãe, chegou do trabalho, a menina nada lhe disse por medo de apanhar. Foram os irmãos, somente no dia seguinte, que relataram o caso. Cecília estava de saída, apressada, a volta ao trabalho que se fazia urgente, e só teve tempo de baixar a gola da filha e ver as marcas dos chupões e mordidas no pescoço da menina. E como ela não poderia faltar ao serviço, pediu aos filhos que ficassem em casa e não fossem à rua por nada e para nada, o medo de que o pior pudesse acontecer na sua ausência. Depois, pegou o ônibus em direção ao Centro, a obrigação de trabalhar e manter seis bocas que, simplesmente, não lhe dava opções.
No trabalho, casa de família, Cecília não falou nada para ninguém. E de noite, quando voltou ao Aura, foi com a menina a uma delegacia buscar atendimento. Da polícia recebeu resposta seca: “Senhora, já passaram 24 horas do fato. Agora não podemos fazer mais nada”. E nem a ocorrência policial elas puderam registrar, a voz do poderoso que cala, com sua arrogância, a do humilde.
Mais tarde, em roda de conversa com os vizinhos, a menina que mora ao lado da casa de Cecília, também com 13 anos e que havia sido estuprada pouco tempo antes, pediu a Júlia uma breve descrição daquele que havia tentado lhe violentar. Terminada a listagem dos traços, a jovem vizinha se pôs a chorar e disse: “foi o mesmo me estuprou. Tenho certeza”.
Esta vizinha, segundo me contou Cecília, também não registrou ocorrência policial. Foi estuprada seguidas vezes e chegou em casa sem poder andar, carregada por um bom samaritano que a encontrou pelas ruas andando feito zumbi. E antes de sair para procurar um hospital que lhe atendesse, a jovem teve que colocar uma fralda geriátrica por conta do enorme sangramento por entre suas pernas. A menina ficou três dias internada e foi operada diversas vezes, suas partes intimas destruídas que precisaram, praticamente, ser refeitas. No final, nada aconteceu com o malfeitor, a família miserável que, já abalada, resolveu não perder tempo em delegacias e procedimentos que não dariam resultado algum – e essa é a idéia comum no bairro do Aurá.
Cecília também conta que, alguns dias depois, o homem ainda passou diante de sua casa de bicicleta. Todos sabem quem é mas ninguém faz nada, o medo de represálias e o poder público que, aparentemente, relega aos moradores do Aurá a regra do deixai fazer, deixar passar, o mundo caminha por ele mesmo.
O tio de Júlia, irmão de sua mãe, já pensou mesmo em fazer justiça com suas mãos mas foi desmotivado por todos: “do jeito que as coisas são aqui no Aurá, bem capaz dele ser logo preso e passar a vida como criminoso. Já o outro, o que tentou estuprar minha filha, que estuprou várias outras, esse está por aí passeando de bicicleta, procurando uma nova menina para se fazer”.
E o homem continua aprontando poucas e boas.
Cecília diz que ele já violentou diversas outras mulheres, meninas e crianças, sem que nada seja feito. E a vida segue...
Depois daquela quinta-feira de fevereiro, Júlia deixou de ir ao colégio e perdeu o semestre, ficou trancada em casa e se rebelou contra a mãe. Passou a dar respostas tortas e ir contra todas as regras da família. Começou também a namorar um garoto, namoro que Cecília desaprova e que lhe preocupa – o menino teria passagem pela polícia.
E com muita conversa e paciência a mãe vem segurando a dor da filha. Final de junho a menina pediu para voltar ao colégio - quer continuar estudando. Aos poucos retorna a boa menina, responsável e risonha, sempre a cuidar dos menores durante a longa jornada da mãe.
Cecília voltou ao colégio agora no mês de julho para tentar reaver a vaga de Júlia. Só não encontrou viv’alma que pudesse lhe ajudar. Sugeriram que voltasse depois, em agosto talvez, pois certamente haveria alguém na secretaria. E ela desabafa, com rancor: “minha filha sumiu do colégio e ninguém me procurou para saber de algo, o que tinha acontecido”.
Realmente, no colégio ninguém se interessou por saber da menina estudiosa e risonha que sumiu de uma hora para a outra sem dizer nada. Também, ninguém se interessou em ajudá-las a perseguir o criminoso, a lei que parece ter pesos diferentes de acordo com o agredido.
E as marcas odiosas de chupadas e mordidas no pescoço, a sensação do visco da baba do agressor que não sai nos “banhos após banhos”, tudo está ainda lá, gravado na mente de Júlia, e de lá não sai tão facilmente.
Está lá também a sensação de desamparo de Cecília, mulher que tem como certa a desnecessidade de polícia ou boletins de ocorrência, a convicção de que nada será feito para lhe ajudar, a dura realidade do Aurá que seca esperanças e crenças e transforma a vida em murcha flor cheia de espinhos.
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