Mapa de Mosqueiro-Belém-Pará

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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Estado, Mercado e Constituição no ''leilão'' de Libra

 

A operação de Libra consistiu, na essência, na formação de um bloco para a exploração das riquezas sob a liderança do Estado brasileiro.


Fábio de Sá e Silva*

Léo Carrato

Quando há pouco mais de 25 anos Ulysses Guimarães promulgou a Constituição da Nova República, o Brasil se preparava para um conjunto de transições bem mais amplo que o de regimes políticos. Muito além de ter permitido ao povo a escolha dos governantes, a democracia abriu espaço para conflitos políticos de vasta magnitude, e que remetem, em última análise, ao sentido do desenvolvimento que passaria a ser trilhado pelo país.
A virtude da Constituição, como reconhecem muitos analistas, tem residido em sua capacidade de mediar esses conflitos. Isso se dá, evidentemente, pelo desenho de instituições ou das regras do jogo, mas também pelo estabelecimento de princípios aos quais o funcionamento das instituições tem sempre que se referir. Princípios estes, por sua vez, que se tornam fórmula vazia se não forem invocados e reconstruídos em função das condições concretas nas quais se reproduz a comunidade “constituída” a partir da Carta.
Essas considerações não podem ser perdidas de vista quando se discute a iniciativa do governo de “leiloar” as reservas de petróleo da camada pré-sal situadas no promissor campo de Libra. A referência ao leilão vem entre aspas porque se trata de qualquer coisa, menos de um procedimento de venda pelo qual o ofertante do maior preço leva a mercadoria. Quem quer que quisesse “concorrer” à possibilidade de exploração das jazidas teria que aceitar inúmeras condições, que incluíam, por exemplo, a parceria necessária com a Petrobras, a partilha do produto da exploração com a União, e o pagamento do bônus de assinatura.
Ideólogos liberais, em geral alinhados eleitoralmente com o PSDB, teceram duras críticas ao modelo, entendendo-o como restritivo ao que se pretende seja a livre atuação dos agentes de mercado nesse importante setor da economia. Como evidência, tendiam a apontar a ausência de grandes players da indústria de energia, em especial as empresas americanas, no processo de “concorrência”. Setores de esquerda, incluindo organizações de trabalhadores, não foram menos generosos, e criticaram fortemente o processo por entendê-lo como entreguista e desnacionalizante. Dilma foi atacada como traidora de um compromisso histórico das esquerdas com o desenvolvimento e a soberania nacionais, bem como de faltar com o compromisso de “não deixar privatizar a Petrobrás, nem o pré-sal”, como dizia o que passou a ser quase o slogan de sua campanha ao final das eleições de 2010.
Não obstante o debate político e as ideologias econômicas, o “leilão” de Libra também traz desdobramentos para o plano jurídico e, inevitavelmente, para o plano da Constituição. Até a véspera do “leilão” a Advocacia Geral da União contabilizava 25 ações ajuizadas contra a decisão. E ainda que nenhuma delas tenha ensejado a suspensão do evento – permitindo que as atividades da comissão de licitação pudessem transcorrer sem maiores constrangimentos, ao menos dentro do hotel Windsor –, o caso pode e deverá seguir tramitando na Justiça.
Trazida para o plano da Constituição, porém, a questão remete menos à natureza privatizante ou não do processo e mais à sua capacidade de articular os princípios que tratam da ordem econômica e financeira do país, tais como soberania nacional, livre concorrência e redução das desigualdades (CF, art. 170). Tarefa esta que, mais uma vez, deve ser conduzida à luz da história.
O debate entre privatização e estatização ganhou impulso no Brasil nos anos 1990, quando sob a liderança de FHC parte considerável do patrimônio público foi vendido para a iniciativa privada, demarcando um movimento inequívoco de saída do Estado de várias atividades econômicas que, a partir de então, lhe caberia apenas “regular”.
Esse movimento cobria não apenas atividades econômicas de grande repercussão e complexidade, como telecomunicações, mas até mesmo serviços públicos hoje tidos como essenciais, tais como saúde e educação, muitos dos quais se pretendia que passassem a ser conduzidos pelo “público não estatal”. A Petrobrás, que perdeu o monopólio de exploração de petróleo e por pouco não foi rebatizada de Petrobrax, era uma das próximas da lista, como deixam evidentes os registros da época. Escapou por mobilizações sociais e por uma trajetória institucional que soube demarcar bem, na consciência popular, a exigência de que “o Petróleo [seja] nosso”. Tivesse FHC feito o seu sucessor ou tido mais tempo e condições políticas para levar seu projeto até o fim e talvez hoje não tivéssemos nem Petrobrás e nem pré-sal.
O pressuposto discursivo das privatizações, sabemos todos, era (e ainda é) o de que o Estado é ineficiente e corrupto, incapaz, portanto, de bem gerir empreendimentos ou serviços. Piores, por sua vez, foram e têm sido as consequências que se costuma extrair dessas premissas: é preciso agradar a todo tempo os agentes de mercado, dos quais o Estado, agora, se vê como dependente para alavancar qualquer processo de desenvolvimento e, no limite, da própria gestão do cotidiano no país.
A atmosfera privatizante dos anos 1990 se rarefez, mas deixou essa marca profunda nos debates políticos brasileiros – marca essa que é reforçada dia após dia pelos mecanismos tradicionais e hegemônicos de formação da opinião pública. Mesmo no caso do Petróleo, notável trincheira de resistência, a mudança do regime de concessão (concebido nos anos FHC) para o regime de partilha (concebido por Dilma e Lula, tendo em vista a descoberta do pré-sal), foi desde sempre denunciada como medida estatista e, portanto, sinônima do atraso e pré-destinada ao fracasso. Não importa que, em algum lugar do mundo, alguém faça sucesso com livros sobre “variedades de capitalismo”.
A centralidade simbólica conferida à instituição “mercado”, com participação ativa da esquerda, a julgar pela disputa por quem é mais apegado ao “tripé”, interdita discussões mais ricas e criativas sobre formas de articulação entre Estado e setor privado. Nesse sentido, talvez o principal erro de Dilma em Libra tenha sido tentar qualificar o que colocava em marcha como uma “venda”, o que inclui a própria cena em torno de um “leilão”.
A operação de Libra consistiu, na essência, na formação de um bloco para a exploração das riquezas sob a liderança do Estado brasileiro, diretamente ou por estatais, além de outros aspectos inovadores, como a vinculação dos dividendos para educação e saúde. Mas como a construção de um modelo alternativo de relação entre Estado e setor privado no desenvolvimento nunca foi assumida abertamente, inevitável que o governo tivesse de lidar com as críticas dos liberais porque não houve “concorrência” e de setores da esquerda porque houve “alienação do patrimônio”.
Certa vez ouvi de um ex Ministro de FHC a avaliação de que ele era um “velho marxista”: colocava em primeiro plano as relações materiais (econômicas), identificava que o mundo estava passando por transformações estruturais com a globalização, e buscava produzir as mudanças necessárias a que o Brasil se inserisse (de maneira subordinada, sabemos) na realidade (material) que estava a se descortinar. Ovos seriam quebrados e limões espremidos (para isso, políticas sociais compensatórias), mas ao final teríamos (em especial as elites cosmopolitas) uma boa omelete com limonada.
Acompanhando a ação de Dilma no governo, faço dela uma leitura semelhante. Focada na economia e empenhada em fazer mudanças estruturais na base material do país, com medidas que vão desde a redução na conta de luz até a formação de quadros técnicos, ela sabidamente dá pouco valor ao simbólico.
Quando os primeiros barris de petróleo de Libra começarem a jorrar e o dinheiro dos royalties começar a cair na conta da educação e da saúde, é possível que ela diga, orgulhosa, que reposicionou o Estado frente não apenas à questão energética, mas também à garantia de educação e saúde a ao combate a pobreza. Para a construção de nossa história jurídico-política, porém, talvez isso não seja suficiente. É preciso entrar sem medo no debate político e defender a escolha feita. Afinal, ainda que tenha de ser testada pelo tempo e pelas urnas, ela representa uma articulação original que não restringe, mas sim liberta o potencial de inovação, nem por isso descomprometido, contido nos nossos princípios constitucionais.


* PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA), Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões deste artigo são de caráter estritamente pessoal.

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