28/3/2013 - 11h21
por Wladmir Pomar*
O processo de favelização urbana no Brasil é antigo. Pelo menos desde a abolição da escravatura, no final do século 19, os ex-escravos das cidades foram segregados em zonas de risco. Foram enxotados para os morros, beira de córregos e outros locais, mesmo insalubres, onde ficassem longe dos olhos das pessoas de fino trato, como os antigos traficantes de escravos, comerciantes, altos funcionários da República etc.
Tal processo tomou um vulto muito mais vasto durante o final dos anos 1960 e nos anos 1970, quando a ditadura militar executou o programa de modernização dos latifúndios. Dinheiro público a rodo, através do Banco do Brasil, financiou a derrubada de antigas culturas agrícolas e de matas, para o replantio de novas culturas e pastagens, com a utilização massiva de máquinas agrícolas.
Tudo com a finalidade principal de criar um exército industrial de reserva de baixo preço para a industrialização do milagre econômico da ditadura. Cerca de 30 milhões de lavradores foram expulsos do campo e engrossaram o mercado de trabalho urbano. Mas a crise dos anos 1970 esvaiu o milagre, estagnou o processo de crescimento e deixou como saldo uma imensa massa populacional excedente ou excluída desse mercado.
A população urbana brasileira saltou de 36% para 84%. Criou-se um tipo de urbanização caótico e favelizado nas grandes e médias cidades, que contrasta as áreas de prédios e condomínios de luxo com as áreas de construções extremamente precárias. Tipo de urbanização que ganhou dimensões ainda mais terríveis com o aumento do desemprego, da pobreza e da miséria. E que foi agravado pela grilagem de terras urbanas e pela especulação imobiliária, que consistentemente empurraram os mais pobres para novas zonas de risco de diferentes tipos, ainda mais distantes e mais perigosas.
Nessas condições, os atuais desastres naturais causados pelas mudanças climáticas apenas estão colocando à mostra a fragilidade daquele tipo de urbanização, que transformou as cidades brasileiras em aglomerados disformes e em horrível contraste com suas belezas naturais. E, além disso, tornam gritantemente evidente a inoperância de uma extensa gama de autoridades públicas, que ainda não se deram conta de que não adianta mudar os flagelados para novas moradias em outras áreas de risco.
As cidades mais afetadas pelas calamidades naturais precisam não só atender emergencialmente aos afetados, garantindo-lhes uma moradia digna durante o processo de reconstrução, mas principalmente sofrer profundas transformações urbanas, principalmente levando em conta que as calamidades naturais quase certamente se repetirão no futuro. Não adianta mais tomar como referência os antigos parâmetros de risco. É necessário multiplicá-los por dois, três ou mais vezes, de modo a proteger as cidades de enchentes e deslizamentos devastadores.
Além disso, é inconcebível que, dois anos após as calamidades anteriores, haja cidadãos e cidades que praticamente continuam na mesma situação de desamparo e de destruição, mesmo tendo recebido recursos para a reconstrução. Por isso mesmo, o governo federal não pode ficar apenas na exclamação indignada da presidenta a respeito da adoção de medidas drásticas.
A presidência da República deve ter poderes legais para criar, na Casa Civil, na Secretaria Geral ou em outros órgãos diretamente subordinados, grupos de trabalho especiais que possam exercer fiscalização e acompanhamento constantes e diuturnos sobre a execução dos projetos de reurbanização e adaptação das cidades afetadas.
O que significa influenciar essas cidades a projetarem mudanças profundas no antigo tipo de urbanização. Essas mudanças devem incluir a proteção contra os deslizamentos de terras. A drenagem de córregos, rios e águas pluviais deve ser reestruturada. Os sistemas de coleta e tratamento do lixo sólido e fluído precisam ser profundamente reorganizados. A construção de moradias deve levar em conta a mecânica dos solos, algo que parece ser desconhecido de algumas construtoras. A arborização das ruas, avenidas e espaços públicos precisa se tornar uma rotina. E há uma série de outras medidas que, há tempos, vem sendo colocada em discussão por muitos urbanistas e que precisa ser observada.
Se é para valer a decisão de medidas drásticas, não bastam os repasses de verbas públicas para as emergências e para as reconstruções do mesmo tipo anterior. Também não bastam as cobranças através dos canais formais e burocráticos. É preciso muito mais para dar início a uma reurbanização que sirva de exemplo para as demais regiões urbanas, já que todas elas correm o risco de ter que enfrentar novas calamidades provocadas pelas mudanças climáticas. A antiga urbanização está falida, mostrando ser incapaz de suportar os novos climas. Ou as medidas drásticas se direcionam nesse rumo, ou as calamidades naturais se tornarão um ralo sem fundo dos recursos públicos.
* Wladimir Pomar é escritor e analista político
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