É importante que seja superada a visão simplista de que “acumular reservas internacionais é o que importa”. As medidas mais importantes para conferir solidez e credibilidade de longo prazo para nossa economia passam por alterar a matriz da produção.
Paulo Kliass
Nesses tempos de crise crônica e alongada da economia internacional, a fragilidade do modelo assentado em torno dos princípios do financismo se evidencia a cada sobre fôlego, a cada novo país ou setor que passe a fazer parte do olho do furacão. O caso mais atual é o do Chipre, uma pequena ilha no Mediterrâneo, cuja economia terminou por se especializar, ao longo das últimas décadas, no delicado ramo da especulação financeira pura e simples. Em uma linguagem bem clara: a opção foi por se apresentar ao mundo como mais um dos paraísos fiscais existentes, oferecendo vantagens de toda natureza para acolher recursos de origem duvidosa ou muito ávidos por rentabilidade mais elevada do que a média.
Por estar muito próximo - em termos econômicos, culturais e geopolíticos - da União Européia e da zona do euro, o país acabou sendo sacudido por um verdadeiro tsunami de correntes de capitais voando para todas as direções. Afinal, até anteontem era considerado uma espécie de porto seguro para os capitais especulativos europeus (especialmente os de origem alemã). E de repente, contaminado pela crise financeira grega, seus títulos e instituições financeiras despencaram ladeira abaixo nas cotações das agências classificadoras de risco.
Crise global e fragilidade do setor externo
Esse tipo de situação passa ocorrer com uma freqüência cada vez mais assustadora, em razão do avanço da globalização e da interligação crescente dos mercados monetários e financeiros. Além disso, é óbvio, contribui sobremaneira a ausência de qualquer forma de regulamentação mais séria das atividades financeiras por parte dos organismos de fiscalização, das agências reguladoras e dos organismos multilaterais. Apesar da crise iniciada em 2008 e da quebradeira generalizada que se verificou em todos os continentes, permanece ainda uma espécie de crença naquilo que seriam as virtudes inquebrantáveis do mercado em encontrar sempre as melhores soluções para tudo.
Com isso, a soberania da maior parte dos países fica comprometida, em especial os de menor dimensão e de maior risco em sua exposição face às regras duras da selva do financismo. Como um dos pilares “imexíveis” do liberalismo econômico é a livre circulação de capitais, as fronteiras financeiras também ficaram completamente expostas e fragilizadas. Basta um comando de “enter” feito por alguns dos operadores dos recursos administrados pelos grandes conglomerados financeiros para que um país comece a apresentar problemas graves em seu equilíbrio macroeconômico. Como o comportamento dos agentes do mercado responde a tudo menos a alguma suposta “racionalidade” em suas ações, as conseqüências de um aumento da percepção de risco do país considerado é muito perverso. O chamado “efeito manada do mercado”, observado na correria em direção a portos considerados mais protegidos, pode ser arrasador para a economia de determinados países.
Reservas internacionais: das origens aos tempos atuais
Um dos mecanismos que os responsáveis pela política econômica utilizam para tentar minimizar os riscos da eclosão desse tipo de crise são as chamadas “reservas internacionais”. A idéia básica é que se um país consegue acumular um volume considerado “razoável” desse tipo de recurso, então ele estará menos sujeito às instabilidades e aos maus humores que costumam afetar, de tempos em tempos, os interesses que atuam no mercado financeiro internacional
Como o próprio nome deixa entender, as reservas internacionais são valores econômicos que os países acumulam em seu histórico de trocas com aquilo que o economês chama de “resto do mundo”. No passado, o denominador comum utilizado como referência de preços nas operações comércio entre as nações era o ouro. À medida que o sistema capitalista começa a se sofisticar, alguns países conseguem se impor como potência econômica hegemônica e o mesmo ocorre com suas respectivas moedas. Num primeiro momento, ainda no século XIX, surge a libra-ouro pelo Império Britânico. Na seqüência, a decadência da economia inglesa se combina à ascensão crescente dos Estados Unidos. E assim, logo depois da Segunda Guerra Mundial, começa o período de domínio norte-americano e de seu dólar.
Como a emissão monetária ainda guardava alguma relação com a capacidade do país honrar o compromisso de valor da sua moeda nacional com seu equivalente em peso de ouro, as reservas internacionais tinham a sua expressão denominada também no vil metal. Mas na década de 1970, os EUA resolveram, de forma unilateral, romper o chamado “padrão ouro”. Isso significou que, a partir de então, a ilusão de que cada cédula verdinha teria o seu valor correspondente assegurado pelo governo norte-americano caiu por terra. Um dólar só valeria um dólar e nada mais. Se tivesse seu poder de compra corroído pela inflação, paciência - reclamações com o Papa. Com uma simples canetada, portanto, o Estado ianque acabava de comunicar aos seus cidadãos e ao resto mundo que as regras do sacrossanto contrato estavam sendo rompidas. Oh, sacrilégio!
Mas as nações continuavam a buscar a sua proteção no que fosse seguro e ágil como salvaguarda de valor. As reservas internacionais foram sendo canalizadas para a moeda norte-americana ou seus derivados de natureza financeira. À medida que outros países passaram a ganhar espaço e importância no cenário internacional, as reservas também foram sendo diversificadas. Em especial, a fase de ouro do Japão e seu iene a partir da década de 1980 e o euro da União Européia a partir dos anos 1990.
A origem primeira do acúmulo de reservas é o saldo positivo na Balança Comercial. Ou seja, se o país apresenta um valor de exportações superior ao das importações, ele pode se permitir estocar esse montante de dólares ou qualquer outra referência de liquidez internacional. Porém, com o processo de aprimoramento do mundo financeiro e das trocas internacionais, nem sempre as coisas são em sua essência aquilo que demonstram na aparência. O caso brasileiro atual, por exemplo, é típico de algumas armadilhas que deveriam ser evitadas e precisam ser mais bem compreendidas.
Brasil e o enorme crescimento das reservas
Há pelo menos duas décadas que nossos crescentes saldos no comércio exterior têm sido constantes e crescentes. Exportamos muito e em valor bem superior às nossas importações. Esse movimento oferece saldos positivos a curto prazo, mas tem conseqüências nefastas para nossa economia e nossa sociedade no longo prazo. Isso porque o modelo adotado reproduz o velho esquema da repartição pós-colonial do globo, onde os países mais atrasados continuam a ficar com a exportação de produtos primários, de baixo valor agregado. E terminam por se tornar dependentes da importação de produtos manufaturados e industrializados, de alto valor agregado. Nossos saldos têm origem na exportação de minério de ferro, soja, carne e suco de laranja. E importamos os trilhos, o aço e toda a sorte de bens de consumo produzidos a baixo custo na China. Nossa economia se desindustrializa e as empresas brasileiras são crescentemente adquiridas por grupos estrangeiros.
Mas os otimistas de plantão batem no peito, muito orgulhosos e ufanistas para gritar bem alto que nossas reservas internacionais batem recordes atrás de recordes. E isso verdade! Em 1994, ano da edição do Plano Real, o saldo era de US$ 39 bilhões. Em 2002, depois de algumas variações, o saldo fechou em US$ 38 bi – praticamente estável em dois mandatos de FHC. Lula encerra seus primeiros quatro anos com US$ 85 bi em 2006. E depois passa o bastão a Dilma com incríveis US$ 289 bi. Os dados de fevereiro desse ano nos exibem um saldo de US$ 377 bi. Isso significa que nossas reservas decuplicaram de valor em 10 anos. É claro que um valor dessa magnitude nos oferece alguma folga no setor externo. Afinal, esse saldo representa mais de 20 meses do valor das importações.
Os países que mais acumulam
Porém, a maioria dos países desenvolvidos não opta por tal estratégia de acumulação tão exagerada de reservas internacionais. Tanto que o Brasil ocupa o 7° lugar em uma lista meio “sui generis” de países com saldo elevado no quesito. Vejamos aqui:
1. China: US$ 3,6 tri
2. Japão: US$ 1,3 tri
3. Arábia Saudita: US$ 627 bi
4. Suíça: US$ 534 bi
5. Rússia: US$ 527 bi
6. Taiwan: US$ 403 bi
7. Brasil: US$ 373 bi
8. Índia: US$ 296 bi
Os Estados Unidos estão fora pelo simples motivo de que não precisam acumular reservas internacionais em outras moedas: os dólares são emitidos pelas máquinas impressoras do próprio FED. A China é a grande novidade das últimas décadas, acumulando um volume mastodôntico, que chega a colocar em risco a própria transição do modelo capitalista contemporâneo. Os chineses detêm um estoque capaz de criar sérios problemas de desarranjo na dívida pública dos EUA e na credibilidade do próprio dólar. Por enquanto, a coisa vai indo bem, pois os próprios asiáticos são os maiores interessados em não provocar uma crise e verem a riqueza de suas reservas virarem pó.
Já a Arábia Saudita se explica, em grande parte, pela condição de maior país exportador de petróleo há décadas. A Suíça por sua condição de porto seguro das aplicações financeiras também por décadas passadas. Taiwan nos fala de um passado em que a China continental ainda não havia se imposto como a única representante do mundo sino e em que os países ocidentais ainda acreditavam em alguma possibilidade de reação à revolução liderada por Mao e seus companheiros. Foi a eclíptica época do “made in Taiwan”, rapidamente substituída pelo “made in China”.
A Rússia apresenta alguma semelhança com o caso brasileiro. País recém chegado na fila de ingresso para o chamado “mundo desenvolvido”, mas sem moeda forte e não fazendo parte de nenhum esquema de união monetária, a exemplo da zona euro. A alternativa é acumular reservas e se fortalecer nos arranjos de integração econômica regional, com vizinhos mais fracos. O mesmo se pode dizer da Índia, nossa parceira no grupo dos BRICs.
No entanto, é interessante observar que países com PIB maior ou próximo ao nosso, amparados pelo guarda-chuva da União Européia, não mantêm estoque de reservas internacionais tão elevados. Vejamos aqui:
1. Alemanha: US$ 241 bi
2. França: US$ 188 bi
3. Itália: US$ 182 bi
4. Inglaterra: US$ 126 bi
O risco de se acomodar com o atual modelo
Assim, é importante que seja superada essa visão simplista de que “acumular reservas internacionais é o que importa”, não interessando qual o preço a pagar por essa opção estratégica equivocada. Manter aquilo que o financês chama de “colchão de liquidez” é necessário, claro, para evitar turbulências no setor externo no curto prazo. Porém, as medidas mais importantes para conferir solidez e credibilidade de longo prazo para nossa economia passam por alterar a matriz da produção, de forma a evitar o perigoso processo de desindustrialização e desnacionalização que assola nosso País. E isso pode até mesmo significar uma redução do nível de reservas internacionais no curto prazo, sem problemas.
O que o Brasil precisa é criar condições para aumentar as exportações de elevado conteúdo tecnológico e alto valor agregado. Ao tempo em que deve implementar condições de produção de bens manufaturados internos para reduzir nossa sino-dependência – cada vez mais tudo vem importado da China. Mas isso significa que um novo pacto político deva ser constituído, em que o agronegócio, a produção de minérios e o financismo não estejam na direção hegemônica, comandando a formação de opiniões e fazendo valer seus interesses, como vem ocorrendo há décadas.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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