por Ana Aranha, para a Agência Pública
Escola rural funciona em barracão feito pela comunidade. Prefeitura mandou apenas a divisória de madeira. Fotos: Ana Aranha
Pública foi ao Pará em busca dos investimentos destinados à educação . Encontrou salas em ruínas, alunos sem livro, caderno, merenda e até sem aula.
Um aluno da 1ª série assiste à aula encharcado. Ele caiu do barco de madeira superlotado que faz o transporte escolar. Na mesma cidade, funcionários da prefeitura circulam em lanchas enviadas pelo Ministério da Educação, equipadas com colete salva-vidas.
Um professor com problemas de saúde recorre ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) e descobre que não tem direito ao benefício. Suas contribuições, descontadas mensalmente há 15 anos na folha de pagamento, nunca foram recolhidas pela prefeitura.
Pais têm medo de deixar os filhos na escola. As paredes foram pintadas por fora, mas por dentro rachaduras se estendem do teto ao piso. Na prestação de contas da secretaria municipal de Educação, mais de um milhão de reais gastos em reforma.
Escolas fecham as portas uma hora mais cedo. A merenda, que deveria durar todo o mês, acaba em menos de duas semanas – e os professores não conseguem ensinar aos alunos com fome. Nas notas fiscais da prefeitura, os alimentos foram comprados. Por até três vezes o preço do mercado local.
Os casos acima são uma amostra da série de crimes cometidos contra os estudantes do Pará. As evidências de desvio de recursos – e as suas consequências – são encontradas fartamente dentro das escolas. Aqui, a relação de causa e efeito é clara: quanto mais corrupção, pior é o ensino oferecido.
Antes de chegar a essa conclusão, a Pública coletou informações sobre a qualidade da educação no norte do país e fez um detalhado cruzamento dos dados sobre os desvios na verba que deveria ser investida nas escolas do Pará. Depois, visitou as escolas do Pará, estado que divide com o Amapá o último lugar no ranking em educação na região norte, por sua vez a que oferece pior ensino no país, de acordo com os novos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação.
A reportagem visitou as cidades de Portel e Anajás, ambas na Ilha de Marajó. Anajás foi a campeã paraense de irregularidades na educação detectadas nas fiscalizações feitas pela CGU ao longo de 2010 e 2011. Portel foi uma das cidades onde houve condenação do prefeito devido a desvios da verba para as escolas. A ideia da visita era a descobrir se a punição surtiu efeito sobre o modo como o novo prefeito gere a educação.
A verba para educação repassada pelo governo federal representa mais de 70% da receita dessas prefeituras, como acontece em 25% dos municípios brasileiros. Boa parte dela é proveniente do Fundeb, (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), que distribui os recursos da educação básica em todo o país. Os recursos se destinam ao pagamento de diretores, professores e coordenadores, aquisição de equipamentos e reparos. As verbas para merenda, transporte, construção de escolas e livros didáticos vem através de convênios diretos com o Ministério da Educação (MEC).
Portel, 52 mil habitantes, recebeu 40,7 milhões do Fundeb em 2011; Anajás, 25 mil habitantes, recebeu 20,2 milhões. Pelo peso que têm na receita, as escolas deveriam oferecer o melhor serviço público dessas cidades. Não é o que se vê nas salas de aula.
Só o esqueleto
De fora, a pequena escola Coquirijó, uma das 177 escolas rurais que ficam à beira dos rios de Anajás, parece bem cuidada. As telhas são novas e as paredes brancas valorizam o verde bem pintado nas janelas e no nome do colégio. Na sala da professora Darlene Lobato, 23 anos, os alunos da 4a série copiam em cadernos e folhas sulfite providenciados pela professora a lição sobre “números naturais”, que enche a lousa, enquanto os meninos da 1a à 3a série tentam ler juntos o papel em que a professora transcreveu a cartilha à caneta. É o recurso disponível para alfabetizá-los.
No canto da sala, alguns livros empilhados na prateleira. “Quem dera pudesse trabalhar com eles, são muito distantes da nossa realidade”, ela diz. “Esses livros têm textos difíceis, nem os alunos da 4a série entendem. Alguns ainda não sabem ler”.
Observando de perto, os livros estão sujos e comidos por insetos. Darlene conta que foi um professor quem providenciou as prateleiras recentemente: “Antes, os livros ficavam no chão, amanhecia tudo molhado”.
A escola foi entregue pela prefeitura sem acabamento. Na cozinha, não há mesa ou prateleira. Merenda, pratos, copos e panelas ficam no chão. Por um defeito da tubulação, a caixa d’água não funciona, alunos e professores buscam água do rio com um balde.
Não há eletricidade. À noite, a professora e a servente, que dormem na escola pois moram longe, na cidade, dormem de vela acesa enroladas em redes para se proteger dos morcegos. Darlene tem planos de mandar fazer um forro, mas é difícil juntar dinheiro quando ela tem que tirar do bolso caderno, lápis e xerox para os alunos que não podem pagar e não recebem o que têm direito e foi repassado do MEC para a prefeitura.
Seguindo pelo mesmo rio Anajás, na comunidade Marituba, encontra-se a Escola Municipal Valdomiro Freitas, que fica em cima de um trapiche para evitar alagamento nas épocas de cheia. A escola foi pintada recentemente, com o mesmo verde e branco, mas a estrutura de madeira que cerca o trapiche para impedir quedas – ele está a alguns metros do chão – está solta. A merenda é insuficiente e os alunos bebem da água do rio, sem tratamento. Como Anajás fica no centro da Ilha de Marajó, e não há estradas, os rios são a principal via de transporte e de escoamento do esgoto.
Sem escola e sem aula
Escola abandonada na zona rural de Anajás. Professor é obrigado a dar aula no galpão de madeira da comunidade
Além desses dois colégios, a reportagem visitou mais quatro na zona rural de Anajás: três estavam sem aula em plena quinta-feira. “Essa escola passa mais tempo fechada do que aberta”, diz o lavrador Fabrício Paiva, que trabalha na frente da escola Laranjal. Ele conta que, mesmo quando tem aula, é comum ver os alunos saindo uma hora mais cedo. “Isso quando eles não ficam só uma hora lá dentro”, diz. “Tem uma conversa que a professora foi pra Belém aprimorar seus conhecimentos. E o conhecimento dos meninos, como fica?”
Na escola São Francisco, não houve aula porque o barco responsável pelo transporte estava quebrado. O professor Pedro Clério Sobrinho mora ao lado da escola, ou melhor, das ruínas da escola abandonada há quatro anos, quando os furos no teto e as rachaduras na parede começaram a assustar. Pedro levou a lousa e as carteiras para um galpão de madeira e teto de palha construído pelos moradores para festas e reuniões – e é ali que a escola funciona, como acontece em outras escolas do interior de Anajás e de Portel.
“Já fizemos até abaixo assinado: ou conserta essa, ou faz outra. Aqui não é local de ensino”. Mas não teve resposta. O professor também não foi atendido quando pediu cadernos, lápis, apontador e borracha esse ano. “Só veio folha de papel”.
Pedro é professor desde 1986 e até hoje é temporário. Ele já tentou o concurso para se tornar efetivo três vezes, mas não passou na prova. Só estudou até o antigo magistério.
Como ele, muitos responsáveis pelo ensino na zona rural não têm ensino superior. Até 2007, professores com magistério podiam dar aula para 1as à 4as série. Desde que o diploma passou a ser obrigatório para lecionar em todas as etapas, multiplicaram-se as faculdades privadas que oferecem cursos de pedagogia à distância com duração de dois anos.
Muitos professores da Ilha de Marajó se matricularam em faculdades, mas nem todos podem levar a graduação à sério. A reportagem conversou com uma professora da zona rural que contou, com bastante naturalidade, que seu irmão faz todas as atividades em seu nome. “Ele me ajuda porque estou isolada aqui, sem computador não dá para cursar”. Essa professora, que se formou no Ensino Médio há três anos, é responsável pela formação de uma turma de 30 alunos da 1a à 4a série.
Para remediar a deficiência na formação dos professores, o MEC oferece às prefeituras convênios de capacitação. Em março de 2006, Anajás recebeu R$ 197 mil para um curso de 15 dias para cem professores da área rural que seria ministrado por quatro educadores de Belém. O orçamento incluía tudo: os honorários dos educadores, alimentação, viagem e estadia na cidade para todos. Mas, na prática, o curso durou cinco dias e foi ministrado por uma educadora de Belém, a única a ter a viagem e hospedagem pagas. Os cem professores da zona rural viajaram e se hospedaram na cidade por conta própria.
Por meio de outro convênio, a prefeitura recebeu ainda R$ 126.800 para a compra de materiais escolares. A ideia era que os professores da zona rural saíssem do curso com mais de 6 mil kits para os alunos com régua, borracha, apontador, cadernos e diversos tipos de papeis, lápis e canetas. Mas, segundo os próprios professores, nenhum deles recebeu o kit.
A denúncia foi feita por meio do Sintepp, o Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública no Pará. “São muitos os desvios de verba, aqui a coisa é escancarada. A gente decidiu se dedicar para provar um caso, de ponta a ponta”, diz o presidente do sindicato em Anajás, Aldomir Ricardo Borges de Menezes, ou Doca, como ele é conhecido na cidade.
A pasta de Doca
O sindicato reuniu relatos dos professores, notas fiscais, repasses com as descrições do convênio e acionou diversas instâncias de investigação para provar o desvio de verbas ao menos nesse caso do curso de capacitação. A Câmara dos Vereadores abriu uma Comissão Parlamentar de Inquérito e, em agosto de 2008, cassou o mandato do prefeito Edson Barros, então do PP.
Em sua defesa, o prefeito argumentou que o convênio foi inteiramente cumprido. Segundo ele, o erro da secretaria de educação teria sido meramente formal: esqueceram de passar a lista de presença e de fazer o recibo para os kits e hospedagem.
O argumento convenceu a Justiça Estadual, que concedeu liminar para ele voltar ao cargo – onde permanece até hoje. Esse ano, tenta eleger sua vice-prefeita pelo PSD (partido criado em 2010 por Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo).
Desde então, Doca vem colecionando documentos sobre desvios de verba da educação de Anajás – e que não se restringem ao episódio do curso. Ele já tem duas pastas cheias. Há dezenas de cartas assinadas por professores e funcionários da educação à Polícia Federal e ao Ministério Público pedindo ajuda e sigilo.
Uma das cartas denuncia o desvio de recursos no fornecimento de alimentos às creches municipais. Segundo os funcionários, as creches Luluzinha e Bolinha nunca receberam os 3 fardos de frango, 24 maços de couve-flor e 250 litros de leite que constam na planilha de prestação de contas assinada pelo secretário de finanças da cidade. A alimentação servida para as crianças costuma ser macarrão, sopa, mingau e biscoito.
Outro documento aponta superfaturamento da merenda para os alunos mais velhos. Na planilha da prefeitura, o suco de caju vale R$ 5,20 a unidade, enquanto no mercado local o mesmo suco custa R$ 2.
Parte dessas denúncias foram investigadas pela Controladoria Geral da União, que enviou uma equipe para passar um pente fino nas contas públicas de Anajás em 2010. Foram 42 constatações de irregularidades, que estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal do Pará.
E ainda há denúncias que ficaram de fora do relatório. Pública entrevistou diversos funcionários que dizem que a prefeitura não repassa ao INSS as contribuições descontadas de seus salários. Pelo menos dois professores mostraram à reportagem suas folhas de pagamento com os descontos mensais e o documento de consulta oficial no INSS, onde consta que sequer existe um cadastro em seu nome.
“Fui a um advogado previdenciário, ele disse que isso é crime de apropriação indébita”, diz uma professora, que não quer se identificar. Ela precisa do benefício para um tratamento médico, mas teme sofrer represálias se entrar com uma ação. “Eles me transferem para uma escola rural a dois dias da cidade, não quero ficar longe dos meus filhos”.
Na pasta de Doca, há algumas cartas falando sobre a chegada da fiscalização da CGU. Depois que a controladoria avisou a prefeitura que suas contas passariam pelo pente fino, observou-se uma movimentação atípica na cidade. “Assim que foi divulgado o sorteio, vimos um mutirão de contadores e técnicos em contabilidade vindo e voltando de avião, trazendo documentos e levando para Belém. Asseguro que foram mais de 10 fretes de aeronaves nesse período, como também amanheciam e anoiteciam no setor de contabilidade da prefeitura”, diz uma das cartas enviadas à Polícia Federal sobre o episódio.
Prefeitura tenta calar professores
A maior parte das denúncias é anônima pois as pessoas temem retaliação. Funcionários dizem que sofreram coação para assinar documentos atestando a chegada de materiais que nunca viram. “Em Anajás a gente tem escolha, assina o recibo ou a carta de demissão”, ironiza um professor.
Além de presidente do sindicato, Doca faz parte do conselho do Fundeb, responsável por fiscalizar a aplicação de recursos e aprovar as contas do fundo. Mas ele diz que não é convocado para uma reunião há mais de um ano. “Teve uma vez que eles me esperaram sair da cidade por uma semana para convocar uma reunião às pressas. Agora estou sempre aqui, não sei como estão aprovando as contas”, diz.
“Se tem alguém aprovando as contas de Anajás, não é o conselho”, diz outro membro do conselho que não quer se identificar. Essa denúncia foi encaminhada ao Tribunal de Contas do Estado, em Belém, há dois anos.
O prefeito e a secretária de educação não foram localizados para responder às denúncias. Segundo o diretor de ensino da cidade, Silas de Jesus, eles estavam viajando pelo interior, onde não pega celular. Segundo Silas, o conselho não se reúne porque os membros têm outras atividades remuneradas e não vão às reuniões.
Doca, que já foi demitido duas vezes e está há cinco anos à frente do Sintepp, não esconde a frustração. “Estou desanimado. Vamos ver se aparece outra pessoa para continuar”, diz, e explica: “Já cansamos de enviar todas essas informações para a Justiça, Polícia Federal, Ministério Público, Ministério da Educação. E nada acontece”.
Em Portel, os conselhos também não funcionam como deveriam. “Em um ano, não vimos uma prestação de contas”, diz Roseane Gonçalves Silva, representante dos funcionários no conselho do Fundeb de Portel.
Ela leva sua câmera fotográfica sempre que o grupo vai visitar as escolas e anota todos os problemas que não podem ser maquiados: salas pequenas, sem segurança, abafadas, escuras. “No interior é mais difícil, só vamos quando a secretaria dá transporte. Mesmo assim, são muitas irregularidades”, diz.
Aos 26 anos, Roseane é formada em química e está fazendo pós-graduação em gestão escolar. Trabalha como auxiliar de secretária. Ela sabe que dificilmente será convidada pela prefeitura para um cargo melhor, mas pretende entrar por um concurso.
Blog dos professores
Apesar das dificuldades, tanto em Portel quanto em Anajás há um grupo de professores que segue denunciando os problemas que enxergam na educação. E que vem ganhando força, principalmente em Portel, a partir do blog do professor Ronaldo de Deus Machado, que busca as ferramentas de transparência do governo federal para fiscalizar.
Sempre que o Ministério da Fazenda divulga as verbas liberadas para as escolas da cidade, Ronaldo coloca os valores no blog. “Mas ainda é pouca informação, não temos os detalhes de onde esse dinheiro deveria ser investido”, afirma.
Portel também recebeu uma visita da Controladoria Geral da União, em 2004, quando a equipe de fiscais encontrou uma série de indícios de corrupção com a verba da educação. Entre elas, fraude de licitação, superfaturamento e notas fiscais referentes a materiais não localizados. Entre eles, um laptop de 3 mil reais e mais de 50 mesas e cadeiras que nunca foram entregues.
As evidências levaram à abertura de investigações no Ministério Público Federal e, no começo desse ano, o ex-prefeito Elquias Nunes da Silva Monteiro foi condenado por uma das muitas irregularidades detectadas: desvio da verba para salário dos professores. Em 2000, quando era prefeito, ele deixou de repassar 120 mil reais para o pagamento de professores. Foi condenado por improbidade administrativa, teve os direitos suspensos até 2017 e obrigado a pagar uma multa de 300 mil reais, mas não era mais prefeito quando foi condenado. Na eleição desse ano, Elquias Monteiro, que não quis falar com a Pública – tenta eleger o filho para vereador.
A condenação não parece mesmo ter surtido efeito em Portel. O atual prefeito demitiu 1.131 professores e funcionários temporários em junho e recontratou 1.024 deles no começo de agosto. Tudo para não pagar as férias dos temporários, que representam 44% dos professores.
“Foi necessário para minimizar os problemas no fechamento do mandato. Economizamos 100 mil reais”, disse o secretário da educação Paulo Hélio Tavares Gomes Júnior, que assumiu a pasta há dois meses, quando a ex-secretária saiu para concorrer à prefeitura.
Questionado sobre o mesmo ponto, Pedro Barbosa, atual prefeito pelo PMDB, deu uma resposta diferente: “Eles receberam as férias sim, todos receberam. Isso é reclamação de professor que não sabe fazer conta”.
A escola paga a conta
Na espera por uma escola, moradores construíram estrutura para prefeitura terminar
Para manter uma estrutura mínima funcionando em Portel, os diretores e professores têm que se virar para encontrar recursos e alternativas para multiplicá-los.
É assim que a escola Abel Nunes Figueiredo construiu a estrutura que hoje lhe rende o título de melhor escola da cidade. Seus banheiros funcionam, há uma quadra coberta, um laboratório de informática e um auditório climatizado que é usado até pela secretaria para palestras e eventos.
A maior parte dessa estrutura foi construída pela escola em “parceria” com a prefeitura – o que na prática significa o corpo docente ir atrás de convênios diretos com o MEC, como o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que libera cerca de 10 mil reais por ano, e depois que o dinheiro acaba, receber uma “ajuda” da prefeitura. Além disso, professores e funcionários promovem festas com os pais dos alunos.
Foi assim que, nos últimos três anos, a escola construiu a sala de informática, dois banheiros, reformou a sala dos professores, nivelou o piso e começou a fazer o auditório. Além de comprar lousas novas, jogos educativos, impressoras, mimeógrafo e computadores para a secretaria.
Quando o dinheiro acabou, a prefeitura terminou de fazer o auditório e pintou tudo.
Na zona rural a situação é ainda mais difícil: Portel tem 9 mil alunos na cidade e 11 mil no interior – comunidades ribeirinhas que ficam a até dois dias de barco da sede.
A uma hora de lancha da cidade, a professora Andreza dos Santos de Azevedo, 19 anos, ainda parece uma aluna. Ela terminou o ensino médio no ano passado; cursou os 8 anos do ensino fundamental na pequena sala de poucas janelas que leva o nome de Escola Municipal Canto Alegre. Na verdade, a maior parte do tempo Andreza passou estudando embaixo de uma árvore – de tão quente que é a escola durante o dia, nem o professor aguenta ficar dentro dela.
Desde que era aluna do fundamental, ela espera que o prefeito cumpra a promessa de construir uma escola nova na comunidade. Há uma ano, a ex-secretária de educação foi à comunidade e prometeu uma unidade “modelo”, com seis salas de aula, sala de informática, cozinha e alojamento para os professores.
Com esse incentivo, o tio de Andreza, líder da comunidade, fez um acordo com o prefeito e juntou as 40 famílias que moram lá para trabalhar. Eles entraram na floresta, tiraram madeira e pagaram uma serraria e um carpinteiro. Assim, a estrutura da futura escola ficou de pé, a maior e mais alta da comunidade.
Quando começou a estação das chuvas, o tio de Andreza foi à cidade pedir à prefeitura, que nada havia feito, que providenciasse as telhas para não estragar as vigas de madeira. Conseguiu metade do necessário e, de novo, a comunidade pagou a instalação.
Agora, a estação de chuvas já passou, está quase chegando de novo, e o esqueleto da escola continua vazio. Metade coberto, metade ao relento. “Às vezes a gente se junta e corta o matinho que cresce dentro”, diz Andreza. “A comunidade tá ficando irada”.
Para não ficar mais embaixo da árvore, os alunos estudam no espaço construído pelos moradores para festas e reuniões. A prefeitura paga R$ 200 pelo aluguel.
Esse mesmo arranjo foi feito em ao menos cinco outras localidades rurais. Em uma delas, a da comunidade Santa Luzia, a turma foi para um barracão de madeira e teto de palha construído pelo pai de Idolino Araújo Ramos, um senhor de 75 anos, quando ele ainda era criança.
A única adaptação que a prefeitura fez no barracão foi colocar duas divisórias de madeira que dividem em três salas os 200 alunos da manhã e os 200 da tarde. “Fica tão cheio que o barulho não deixa ninguém estudar”, diz Maria do Livramento Gibson Ramos, filha de Idolino que tem 26 anos e está na 7a série. Ela estuda à tarde, quando funcionam as turmas de 5a à 8a série. Nesse período não há livros, nem merenda. “A comida é só para os pequenos, de manhã, e mesmo assim dura metade do mês. A gente só faz copiar da lousa”, afirma.
Maria estuda na turma dos adolescentes porque a prefeitura suspendeu o professor que dava aula para os adultos. Sua irmã, Maria Trindade Gibson Ramos, 34 anos, não pode fazer o mesmo pois ainda estava na 2a série. “A gente estudava embaixo da árvore, só com o caderninho, mas tava aprendendo. Quando comecei a ler e escrever um pouquinho, o professor parou”, diz.
Nem todas as comunidades têm um espaço para alugar à prefeitura. A escola Cumucuru funciona em um barracão que tem apenas teto e uma parede. Quando chove, as aulas são suspensas. Na escola Hugo Carlos Saboia, que está cheia de furos no teto e rachaduras na parede, as aulas foram transferidas para o espaço que a comunidade usa como igreja. Sob a mesa do professor, há livros didáticos, uma bíblia e uma vela.
Maquiando os resultados
Dentro desse cenário, é difícil falar em qualidade da educação. “Não há nenhuma orientação ou preocupação em relação ao que acontece dentro da sala de aula. Foi trabalhar, preencheu a caderneta, está perfeito”, diz Odineia Ferreira Correia, professora de história na zona rural. Ela conta que, na sua escola, ninguém nem ficou sabendo quais os resultados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação). O índice deveria servir de baliza para as escolas fazerem uma auto-avaliação do ensino que oferecem.
Segundo a professora, a única orientação que recebeu foi para diminuir a repetência dos alunos. Como o Ideb combina a avaliação dos alunos em português e matemática com a aprovação, muitas escolas conseguem melhorar a nota sem mexer na qualidade, apenas aprovando os alunos.
Foi exatamente isso que aconteceu em Portel. O Ideb da cidade saltou de 2,7 em 2009 para 3,8 em 2011 (em uma escala de 0 a 10). O crescimento se deve exclusivamente ao aumento da aprovação, já que a nota dos alunos em português e matemática caiu.
Se conseguirem vencer a corrida de obstáculos do ensino fundamental, os 20 mil estudantes do ensino fundamental de Portel ainda tem que contar com a sorte para conseguir uma vaga no ensino médio. São apenas 1.606 vagas para o ensino médio oferecido pelo Estado nas duas escolas da cidade. Boa parte deles ficou sem aula no primeiro semestre desse ano pois uma dessas escolas ficou seis meses em reforma.
Em Anajás, o dilema se repete: são 8.396 estudantes de ensino fundamental e apenas 659 vagas no ensino médio. O único colégio para os jovens, também do Estado, está sem professor de língua portuguesa, física e inglês e sem monitor de informática – o que inviabiliza o uso dos computadores.
Sem opção para educar os filhos, alguns querem mudar de cidade
As falhas na educação são tantas que há quem planeje mudar de cidade antes dos filhos crescerem. É o caso dos pais de Wellen Vitória Pacheco, que está na 3a série. Em junho desse ano, eles se deram conta que a filha ainda não sabe ler todas as letras do alfabeto. A mãe, Silvia Pantoja Pacheco, foi conversar com a professora. “Ela disse que está ensinando conforme o padrão”, conta. Silvia lembra da filha mais velha, que hoje trabalha com contabilidade na cidade de Osasco, em São Paulo, e já sabia ler e escrever na 3a série. Eles moravam em oura cidade e a filha estudava em escola particular. Em Anajás não há essa opção.
Os pais pedem para Wellen pegar o caderno, que está cheio de textos longos. A letra é bonita, mas a menina não consegue ler o que está escrito no seu caderno.“E o que a professora faz enquanto vocês copiam da lousa, filha?” , pergunta a mãe. Wellen imita uma pessoa mexendo no celular.
O professor Antônio Paixão, que dá aula na rede municipal de Anajás, já está financiando um apartamento em Belém para enviar os filhos de 7 e 10 anos para estudar na capital assim que der. Como membro do conselho municipal da educação, ele acompanha as contratações para a área, e diz que um dos problemas da educação é a nomeação de professores e funcionários por motivos “políticos”. Em uma única reunião realizada em março desse ano, conta, o conselho aprovou a contratação de 117 novos funcionários para a educação – número significativo em uma rede que tem 487 professores. “É cabide de emprego”, ele diz.
Enquanto a folha de pagamento incha, falta recursos para áreas críticas. Em Anajás, muitos barqueiros, responsáveis pelo transporte escolar, ganham R$ 450 por mês – valor que deve cobrir o salário e aluguel do barco. Quando o barco quebra, nem sempre os barqueiros podem consertá-lo na mesma semana ou mês, período em que os alunos ficam sem ir à escola.
Enquanto isso, quatro lanchas enviadas pelo Ministério da Educação estão paradas. Segundo o diretor de ensino do município, elas não podem ser usadas para transporte escolar pois consomem muita gasolina. Mesma desculpa apresentada pelo secretário de educação de Portel, Paulo Hélio, para justificar o não-uso do transporte bancado pelo MEC.
Ali, as crianças se queixam das condições dos barcos, e dizem passar medo no caminho para a escola. “O barco é velho, tem tábua solta, entra muita água. Tenho medo de alagar”, diz Alice Maia Libório, 9 anos. “Tem vez que tá tão cheio que não dá pra sentar, a gente vai de pé, segurando firme”.
Alice ficou impressionada ao ver, esse ano, colegas caindo do barco em movimento. “Teve um meninozinho que caiu, aí parou e puxaram ele. Ele sentou molhado na sala”.
Mas o secretário Paulo Hélio prefere responsabilizar os alunos pela falta de segurança no transporte escolar. “Já vi menino deitado no toldo do barco, sem obedecer as regras. E tem aluno que se joga na água”.
O prefeito Pedro Barbosa, faz coro, dizendo que os relatos dos alunos não passam de “invencionices”. “Esses meninos nasceram e se criaram dentro desses barcos. Se der problema, eles mesmo sabem consertar”.
* A série “O Futuro da Amazônia” tem o apoio da Fundação Carlos Chagas.
** Publicado originalmente no site Agência Pública.
(Agência Pública)
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