Revista do Brasil - Edição 73 - Julho de 2012
Ambiente
A concentração de renda e as desigualdades sociais dão motivos para a criação de um medidor da Felicidade Interna Bruta (FIB)
Por: Hylda Cavalcanti
Publicado em 15/07/2012
Brincadeira. Homens fazem disputa em jogo tradicional no Butão (Foto:Desmond Boylan/Reuters)
No amor, na religião, na escolha política, no estilo de vida, nos bens de consumo e até nos vícios a busca da felicidade move o ser humano. Por isso, a felicidade das populações passou também a ser vista como um indicador importante para medir a qualidade do desenvolvimento de um país. Essa possibilidade tem sido disseminada como um novo paradigma mundial a ser buscado. No Brasil, já norteia projetos-piloto em cidades dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. E toma como base uma sigla há bem pouco tempo insólita: FIB, ou índice de Felicidade Interna Bruta.
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O FIB avalia aspectos sociais, ambientais e econômicos das comunidades e considera uma população feliz, ou não, a partir de nove pilares. A ideia surgiu em 1972 no Butão – pequeno país asiático situado entra a Índia e a China –, quando o rei Jigme Singye Wangchuck quis estabelecer uma monarquia constitucional e criou o tal índice para medir a prosperidade nacional a partir de outros aspectos que não os de produção e consumo – utilizados no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB). Pouco tempo depois, esse parâmetro passou a ser objeto de estudos por parte de cientistas e acadêmicos.
Hoje, o FIB tem aval da Organização das Nações Unidas e já é utilizado em várias pesquisas. É alvo de uma discussão metodológica, sobre ser ou não mais real que o PIB quando se trata de examinar questões ligadas ao desenvolvimento. E tem defensores como o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e o Nobel de Economia Joseph Stiglitz. O assunto foi tema de reunião do Alto Comissariado da ONU no início do ano e de debates na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20.
Por esse critério de medição, são levados em conta aspectos como grau de satisfação, qualidade da governança e a influência do tempo na vida das pessoas. Por exemplo, uma pessoa que tem uma jornada de trabalho menor ou consome menos tempo no trajeto de casa para o trabalho é mais “feliz” do que outra em situação oposta – e essa relação não é medida pelo PIB.
Outros indicadores importantes criados para alcançar condições não verificadas pelo PIB, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), já estão consolidados. No Brasil, por exemplo, o IDH coloca o país na 84ª posição no ranking global, enquanto em termos de PIB aparecemos em sexto lugar. Isso acontece porque a medição obtida pela soma de todas as riquezas produzida nas unidades da Federação ainda convive com situações desiguais. Mas tampouco o IDH basta para apurar a “taxa de felicidade” de uma comunidade.
Por isso, pesa a favor do FIB o fato de ser composto por indicadores mais próximos aos valores e reivindicações de uma sociedade. Sobretudo num tempo em que ter maior mobilização social e ser voz ativa numa comunidade é quase uma exigência – ou seja, o nível de democracia real, de poder de influência de uma sociedade nas decisões de governo, também afeta a satisfação das pessoas.
“O FIB estimula ações e mudanças de parâmetros não apenas entre as pessoas, na forma como conduzem sua vida, e na esfera pública, mas também na iniciativa privada e nas comunidades acadêmicas”, afirmou o representante do Butão, Karma Dasho Ura, em debate na Rio+20. “Os resultados da conferência precisam proporcionar, nos próximos anos, um novo cálculo que não dissocie bem-estar social, econômico e ambiental. Os três conceitos é que definem a felicidade global bruta.”
O butanês observou que as pessoas felizes, segundo pesquisas, são também funcionários mais produtivos e mais atuantes em equipe. “Gente infeliz não projeta nada de novo. E, embora a felicidade seja um sentimento individual, pode ser produzida coletivamente. Mas sem indicadores é difícil perceber o quanto é complexa a realidade”, destacou. “PIB mede tudo, menos aquilo que faz a vida valer a pena.”
Para o cientista canadense Michael Pennock, estudioso da ferramenta, um dos pontos altos do FIB é o modo como influencia a formulação de novas políticas públicas, como em emendas que complementam legislações trabalhistas. Em entrevista a uma publicação da Universidade de Brasília (UnB), Pennock afirma que no cálculo do FIB o emprego é apenas uma entre as várias atividades das pessoas. “O tempo dedicado aos filhos, por exemplo, também tem de ser contado”, explica.
FIB brasileiro
No Brasil, a Fundação Getulio Vargas (FGV) iniciou pesquisas para a elaboração de um índice de Felicidade Interna Bruta adaptado a nossa realidade. “É preciso entender os fatores tidos como determinantes para o bem-estar dos brasileiros”, diz o pesquisador Wesley Mendes, um dos coordenadores do trabalho. O objetivo não é trazer o índice do Butão para cá tal e qual foi criado, mas enfatizar a importância de aspectos como educação, saúde, renda, violência e uso do dinheiro e, dessa forma, complementar indicadores como o IDH e o índice de Gini (que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos).
“Hoje o bem-estar social, econômico e sustentável são inseparáveis e é preciso reconhecer essa paridade”, destacou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. “O que está sendo discutido no mundo precisa ter um resultado que reflita isso, leve em conta os atuais desafios das nações.”
Quem trouxe ao Brasil o conceito de FIB foi a monja e antropóloga norte-americana Susan Andrews, 20 anos atrás, a partir de palestra realizada na Eco92. Ela é a atual coordenadora do chamado Projeto FIB Brasil, iniciado com recursos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que resultou, no município paulista de Porangaba, no parque ecológico Visão Futuro, considerado uma das primeiras ecovilas brasileiras.
Num espaço de 100 hectares, são obedecidas regras voltadas para o uso de recursos naturais e aplicados parâmetros adotados a partir das pesquisas feitas com base nos nove pilares. No parque se utiliza apenas energia limpa, a agricultura é orgânica, o lixo e parte da rede de esgoto são reciclados e o lugar ainda aloja um centro de saúde ayurveda. O projeto é desenvolvido com apoio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), responsável pela aplicação do questionário do FIB na cidade.
Trabalhos semelhantes também foram apresentados em outros três municípios paulistas: Angatuba, Itapetininga e Campinas. Fora do estado, observam-se iniciativas em Bento Gonçalves (RS) e Planaltina (DF), na comunidade de Rajadinha. Nesses locais são valorizadas a vida em comunidade e ações engajadas a partir dos percentuais maiores ou menores que apontam as necessidades da população em relação a tempo, cultura, lazer ou envolvimento comunitário.
Nas palavras da antropóloga Susan Andrews, o bom é que os resultados dos questionários “não causam apenas discussões, mas iniciativas imediatas”. Ela citou como exemplo Itapetininga, em que a população acabou atuando em conjunto com o poder público para melhorar a assistência médica, depois de constatada como um dos principais problemas do lugar.
Em Rajadinha, núcleo rural do Distrito Federal onde moram 420 famílias, os moradores têm se articulado para melhorar o fornecimento de água com trabalhos voltados para o projeto-piloto Rio São Bartolomeu Vivo. Isso porque o acesso a água limpa foi apontado como a grande dificuldade local.
“Participar do projeto transformou nossa vida. Estamos vendo o lugar onde moramos se desenvolver e, também, entendendo melhor as questões que dizem respeito à comunidade”, afirma a estudante Edla Soares. “Minha mãe costuma dizer que o centro comunitário passou a ser nossa segunda casa, de tanto que nós e a vizinhança, de um modo geral, comparecemos às reuniões e damos opiniões sobre tudo o que acontece.”
Ao lado de um grupo de colegas, Edla aplica os questionários das pesquisas e participa das mobilizações com vistas às mudanças exigidas para a estrutura de Rajadinha. Melhorias já começam a ser observadas em meio a ruas esburacadas e às dificuldades de uma população que vive, em média, com renda mensal de um salário mínimo.
A experiência conta com o apoio da Fundação Banco do Brasil e foi apresentada pelo presidente da entidade, Jorge Streit, na sede da ONU. “Projetos como o de Rajadinha têm contribuído para a formação de uma agenda de debates e articulações com outras instituições sobre a possibilidade de introdução dessa metodologia em definitivo no Brasil”, disse Streit, para quem o FIB pode ser uma importante ferramenta para nortear o desenvolvimento sustentável de uma nação.
Tempo para viver
“A introdução dos indicadores do FIB já é um movimento mundial”, sustenta Susan Andrews. Durante sua palestra na Rio+20, a antropóloga apresentou pesquisas internacionais que mostram que, quando uma família sai da pobreza, há um aumento da felicidade. Mas, conforme a renda vai ficando mais alta, o crescimento desse indicador não é automático. Se não houver preocupação maior com outros aspectos, especialmente a questão do tempo, existe tendência de diminuição do índice de satisfação das pessoas, do seu nível de engajamento (ou vitalidade) comunitário e de interação com a própria família.
A partir de dados da ONU, a estudiosa verificou, enquanto nos Estados Unidos o PIB triplicou nos últimos 50 anos, chegando a US$ 15 trilhões em 2011, o número de suicídios no país quadruplicou e foram efetuadas cinco vezes mais prisões. No Japão, a média de suicídios é de 25 para cada 100 mil habitantes, uma das maiores do mundo, apesar do alto poder aquisitivo da população.
“O PIB não leva em consideração temas como saúde das famílias, qualidade da educação, segurança das ruas, beleza da arte, estabilidade dos casamentos e dignidade dos governantes”, acusou. “Todas as pessoas que compreendem a urgência e a profundeza da nossa crise global perceberam que está acontecendo um processo de mudança que envolve a reavaliação dos pressupostos básicos da vida moderna, dos nossos padrões habituais de pensamento e da estrutura completa da economia mundial.”
Em abril deste ano, a mais recente edição do Relatório da Felicidade Global, elaborado com a participação de pesquisadores de várias universidades, divulgou em Nova York o ranking dos países mais felizes do mundo, a partir de estudos feitos com base em pesquisas de opinião que levam em conta os nove parâmetros do FIB e dentro deles 33 indicadores, como horas de sono, qualidade de moradia e danos ambientais nos locais onde as pessoas vivem. O trabalho avalia, todos os anos, 150 países. O Brasil ocupa a 25ª posição. Nos primeiros lugares figuram Dinamarca, Noruega, Finlândia e Holanda. Ou seja, se o PIB per capita elevado não é sinônimo de felicidade, também não é, por si só, de infelicidade.
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