Eu vos convido a voltar aos bancos de escola para que façamos a interpretação de texto de alguns trechos da dramática carta de Ricardo Teixeira. Tirando um errinho ou outro, trata-se de uma carta de renúncia bem feita. Pena que tenha demorado tanto para ser escrita.
José Roberto Torero
Há dois tipos de cartas de renúncia: as telegráficas e as dramáticas.
As telegráficas são cartas meramente técnicas, que apenas comunicam a saída do poderoso. Foi como fizeram D.Pedro I (29 palavras), Collor (37 palavras) e Nixon (apenas 11).
Já as dramáticas são longas e contam histórias. Elas tentam apontar vilões, eximir os autores de culpa e colocá-los como vitoriosos injustiçados.
Dito isto, estudioso leitor e estudada leitora, eu vos convido a voltar aos bancos de escola para que façamos a interpretação de texto de alguns trechos da dramática carta de Ricardo Teixeira.
Ele começa dizendo:
“Ser presidente da CBF durante todos esses anos representou na minha vida uma experiência mágica. O futebol, no Brasil, é mais que esporte, mais que competição. É a paixão que envolve, é o sofrimento que alegra, é a fidelidade que unifica.”
Notem que o texto começa dizendo que ficar na CBF foi algo mágico. Não, não sejam maldosos. Ele não está falando de truques de desaparecimento de reais ou multiplicação de dólares. Sua intenção é começar com um tom emotivo, usando palavras como “paixão”, “alegria”, “fidelidade”.
Quanto à forma, vale ressaltar que a frase final se utiliza de uma afirmação tripla, um ritmo largamente utilizado para provocar emoção. Ponto para Teixeira.
Depois continua:
“Por essas razões, pensei muito na decisão que ora comunico e pensei muito no que dizer sobre minha decisão.”
Aqui temos uma das poucas falhas estilísticas do texto. A repetição da palavra “decisão” poderia ser evitada. Na verdade, a frase poderia acabar em “comunico”. Mas o mais importante de se notar é que o autor insiste em dizer que foi uma decisão tomada exclusivamente por ele. Não foram as pressões ou as acusações que o fizeram sair, mas o “pensar muito”.
“Fiz, nestes anos, o que estava ao meu alcance, sacrificando a saúde, renunciando ao insubstituível convívio familiar”.
Aqui Teixeira começa a se colocar como vítima. A ideia é mostrar-se como um herói capaz de sacrifícios, como alguém que dá sua vida por uma causa, alguém que deixa de lado os parentes para pensar no futebol e no país.
Mas é bom lembrar que ele não estava assim tão longe da família. Afinal, na CBF estava seu tio Marco Antônio, secretário-geral, e ainda está seu irmão Guilherme, diretor de patrimônio. E no COL (Comitê Organizador Local) trabalham sua filha Joana Havelange, diretora-executiva, e seu cunhado Leonardo Rodrigues, gerente de compras.
“Não há sequência de ataques injustos que se rivalizem à felicidade de ver, no rosto dos brasileiros, a alegria da conquista de mais de 100 títulos, entre os quais duas Copas do Mundo, cinco Copas América e três Copas das Confederações. Nada maculará o que foi construído com sacrifício, renúncia e dor.”
É lançada aqui a ideia dos ataques injustos, algo sempre presentes nas cartas de despedida, pois, na verdade, segundo os escritores destas cartas, estas infâmias é que são as culpadas pela renúncia. Por exemplo, em 2001, ACM escreveu: “Fui submetido a um tratamento injusto, mas sobretudo covarde”.
O renunciante dramático sempre se coloca como vítima de um conluio. Mas Teixeira vai além e diz que não importam estes ataques frente à alegria nos rostos brasileiros. É como se ele, tal qual um mártir, não se importasse por sofrer desde que isto trouxesse felicidade ao povo.
Vale assinalar que Teixeira foi habilidoso na enumeração. Começa com 100 títulos e depois coloca os mais importantes, desse jeito valorizando os cem citados anteriormente, no qual devem estar dezenas de taças sem a menor importância.
“A mesma paixão que empolga, consome. A injustiça generalizada, machuca. O espírito é forte, mas o corpo paga a conta. Me exige agora cuidar da saúde.”
Estamos nos aproximando do final e a carta fica mais emocionada.
Infelizmente na segunda frase temos um erro feio, com uma vírgula separando sujeito e predicado. Mas o que vale é que o autor se coloca como vítima da paixão. Foi seu amor ao futebol que provocou a injustiça generalizada. E foi o excesso de zelo pelo esporte e as injustiças que causaram seu problema físico.
É curioso perceber o uso da próclise em “Me exige...”. Isso é errado segundo os padrões da norma culta, mas aproxima o autor do leitor comum.
Quanto ao sentido, este é um dos trechos mais importantes da carta, pois é o que revela a causa, ou desculpa, para a saída do cargo: a saúde. Não são as acusações de corrupção, não são o caso ISL ou da Ailanto, mas apenas a saúde. É um ótimo pretexto. Há que ver se alguém acredita.
“Deixo a CBF, mas não deixo a paixão pelo futebol. Até por isso, a partir de hoje e sempre que necessário, coloco-me à disposição da entidade.”
Este final também é clássico nas cartas de renúncia. Num gesto de grandeza, aquele que sai se coloca à disposição. Jânio Quadros disse: “Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Há muitas formas de servir nossa pátria". Paulo Otávio, ao deixar o governo do DF, seguiu o mesmo tom: “Quanto a mim, saio da cena política e me incorporo às fileiras da cidadania”.
Finalmente, eis o parágrafo derradeiro:
“À torcida brasileira, meu muito obrigado. Nunca me esquecerei das taças sendo erguidas. Elas estão no coração de cada um de nós. Elas são um pedaço do Brasil."
Este final é especialmente interessante. Ele sintetiza duas intenções da carta de Teixeira. Coloca o povo brasileiro como seu interlocutor e põe-se mais uma vez como vitorioso, como já havia feito nos “mais de 100 títulos”.
Do ponto de vista estilístico, o texto recupera a emoção do primeiro parágrafo, utilizando termos como “meu muito obrigado”, “nunca me esquecerei”, “coração de cada um de nós” e “pedaço do Brasil”. Um bom fecho.
Em resumo, tirando um errinho ou outro, trata-se de uma carta de renúncia bem feita. Pena que tenha demorado tanto para ser escrita.
José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP, publicou 24 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti e Livro do ano em 1995), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti 2004) e, mais recentemente, O Evangelho de Barrabás. É colunista de futebol na Folha de S.Paulo desde 1998. Escreveu também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Como fazer um filme de amor. É roteirista de cinema e tevê, onde por oito anos escreveu o Retrato Falado.
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