MÍRIAM LEITÃO
Círculo militar
O país tem discutido, nos últimos dias, o passado do regime
militar. É tarde, mas não tarde
demais. A sociedade decidirá o alcance desse reencontro, mas o
passado deve ser revisitado se o país
escolheu jamais repetir aquele erro. Novas informações surgem
sobre histórias antigas, novos caminhos
jurídicos. Os militares repetem o velho enredo de vetar o
debate. O governo ainda não nomeou os
integrantes da Comissão da Verdade.
Vladimir Herzog foi morto há 36 anos, com apenas 38 anos, horas
depois de entrar no DOI-Codi,
no II Exército. Tinha endereço certo, dirigia o jornalismo na TV
Cultura, não demonstrou qualquer
intenção de fugir, apresentou-se para depor, nunca houve culpa
formada, não se sabe do que foi
acusado, não se sabe até hoje como o mataram.
Uma nova foto, omitida na época, mostra o que sempre soubemos e
dá mais clareza à farsa
montada para tentar esconder a verdade. Foi publicada nos
últimos dias no site organizado pelo
deputado Miro Teixeira (www.leidoshomens.com.br). Pelo ângulo se
vê que se quisesse cometer suicídio
ele amarraria a faixa na grade superior. O site mostra também
uma carta do general Newton Cruz ao
então chefe do SNI, João Figueiredo, revelando a luta intestina
dentro do aparelho repressor.
Nestes 27 anos de democracia já deveria ter havido a busca da
verdade sobre as circunstâncias
das mortes e dos desaparecimentos políticos. Não é revanchismo.
É uma obrigação do Estado para com
as famílias e a História. Sempre que o assunto retorna, os
militares calam a discussão. A fórmula é
conhecida: os da reserva fazem notas com protestos e ameaças
veladas, os comandantes da ativa
fazem pressão por dentro, usando
como prova da insatisfação da tropa as notas dos aposentados. Assim
se forma o círculo do veto. O poder civil recua.
Herzog é uma das tantas feridas que não cicatrizam porque não é
uma questão de tempo, e sim
de prestar contas do crime que o Estado cometeu. O governo
democrático não buscou os fatos com a
diligência que a construção institucional exige. Essa falha
permite que os militares mantenham sua
versão. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva afirmou na entrevista
que me concedeu que "ninguém pode
dizer que ele (Herzog) foi morto pelos agentes do Estado. Nisso
há controvérsias. Ninguém pode
afirmar". O Instituto Vladimir Herzog reagiu com nota de
repúdio.
Por que um general que estava até 2007 em postos importantes é
capaz de levantar tal dúvida?
Porque sempre que eles mandaram o país interromper a conversa
sobre Herzog e qualquer outro foram
obedecidos. Em outubro de 2004, o "Correio Braziliense" publicou
fotos que supostamente eram de
Herzog. Isso detonou uma crise militar. O serviço de comunicação
do Exército publicou uma nota em que
justificava torturas e mortes. "As medidas tomadas pelas Forças
Legais foram uma legítima resposta à
violência dos que se recusaram ao diálogo, optaram pelo
radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a
iniciativa de pegar em armas e desencadear ações
criminosas."
O então ministro da Defesa, José Viegas, exigiu do comandante do
Exército, Francisco Roberto
de Albuquerque, uma nota de retratação. O general optou por uma
nota na primeira pessoa em que dizia
que aquela forma de abordar o assunto não era adequada. O
Exército jamais se retratou. O ministro
Viegas deixou o posto dizendo que o pronunciamento provava a
persistência do "pensamento
anacrônico" da "doutrina de segurança nacional" em plena
vigência da democracia.
Esse não foi o primeiro nem o último evento em que os militares
constrangeram o poder civil. Foi
o mais explícito porque Viegas deu transparência aos fatos. Ele
disse em sua saída que achava
inadmissível que as Forças Armadas não demonstrem "qualquer
mudança de posicionamento e de
convicções". Disse que considerava inaceitável que se usasse o
nome do Ministério da Defesa para
"negar ou justificar mortes como a de Vladimir Herzog".
Lembrar esse episódio nos ajuda a ver como é persistente o veto
militar a duas providências
fundamentais: procurar as informações que à época foram negadas
pela ditadura; promover uma
renovação do pensamento das Forças Armadas sobre seu papel
naquele período.
O general Rocha Paiva não é um ponto fora da curva; ele
representa o pensamento majoritário
dos militares da ativa e da reserva. Isso fica provado também no
número de oficiais, que estavam no
comando até recentemente, que assinaram a nota de protesto dos
clubes militares contra a Comissão da
Verdade. Eles pensam hoje o que sempre pensaram. Rocha Paiva
disse, por exemplo, que não há
provas do crime do Caso Riocentro (a transcrição na íntegra da
entrevista está no meu blog).
Como o pensamento das Forças Armadas não foi atualizado, novas
gerações estão sendo
formadas nessa convicção. O desvio tem se perpetuado. Eles ainda
defendem como legítimo o que
houve nos 25 anos de exceção, ainda cultuam os ditadores como
heróis, ainda protegem os torturadores
e sonegam informações. Se o governo se deixar intimidar na
Comissão da Verdade estará capitulando
diante da pressão do círculo
militar.
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