247 - Talvez não haja exemplo no mundo comparável ao do grupo Abril. Uma casa editorial que, mais do que qualquer outra, em qualquer parte do planeta, tenha exercido um protagonismo político tão forte na sociedade em que está inserida. Veja, principal publicação do grupo, foi a revista que, em 1989, ano da primeira eleição presidencial após o regime militar no Brasil, inventou o personagem "caçador de marajás", ajudando a eleger Fernando Collor. Foi também a revista que liderou seu processo de impeachment, três anos depois. E que, em 1994 e 1998, abraçou fortemente os projetos políticos do PSDB, encarnados na figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
A partir de 2003, com a chegada do PT do ao poder, Veja deixou de ser propriamente um produto jornalístico para se transformar numa trincheira de combate político. Contribuíram para esse fenômeno razões de natureza ideológica, como o alinhamento automático da família Civita com os Estados Unidos e seus interesses financeiros, mas também de cunho econômico. Próximo a políticos como FHC e, sobretudo, José Serra, o editor Roberto Civita, falecido ontem, soube também aproveitar as oportunidades criadas por máquinas poderosas, como o Palácio dos Bandeirantes e a Prefeitura de São Paulo. E fez da venda de assinaturas e de revistas educacionais ao setor público um de seus maiores negócios – o que contribuiu para colocá-lo na lista de bilionários da revista Forbes.
Nesses dez anos de combate permanente, a Abril descambou, em vários momentos, para o preconceito, o ódio de classes e a mentira, pura e simples. Veja foi a revista que, numa de suas capas, deu um pé na bunda do ex-presidente Lula, expressando aquele que talvez fosse o maior desejo de Roberto Civita. Em outra, mais recente, colocou Dilma pisando num tomate, aderindo ao lobby não declarado pela alta das taxas de juros no Brasil. E publicou denúncias jamais comprovadas em sua caçada ao PT, como a dos famosos dólares de Cuba – esta, ancorada no suposto depoimento de um morto. Um "escândalo", diga-se de passagem, que foi apenas um entre dezenas de exemplos de transgressões editoriais.
Em 2010, quando Dilma Rousseff chegou ao poder, e Lula, o operário-presidente que jamais foi aceito por Civita já estava fora do Palácio do Planalto, muitos tinham a expectativa de que a Abril poderia ajustar sua linha editorial, retornando a uma postura menos extremista e mais ao centro, condizente com o retrato da sociedade brasileira. Um dos sinais foi a saída de Diogo Mainardi e o deslocamento de editores que comandavam a falange do ódio na publicação para posições subalternas. Outro foi a contratação de Fábio Barbosa, ex-presidente do Santander, que havia sido membro do conselho de administração da Petrobras, sob a presidência de Dilma, e tem bom trânsito em Brasília.
No entanto, quando veio o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão, o ódio falou mais alto. Veja fez de tudo para emparedar ministros do Supremo Tribunal Federal não alinhados com a condenação, forjou alianças com alguns deles e alimentou novos enredos de ficção, como na suposta tentativa de intimidação do ministro Gilmar Mendes pelo ex-presidente Lula. Quando veio a tão esperada condenação, a revista estampou em sua capa fogos de artifício, mas todo o esforço não atingiu plenamente seus objetivos – na eleição municipal de 2012, José Serra foi derrotado para Fernando Haddad, do PT.
Ao mesmo tempo, Veja sofreu o maior arranhão de sua credibilidade em todos os tempos, com a comprovação de que manteve uma aliança de mais de uma década com um dos maiores contraventores do País – o bicheiro Carlos Cachoeira, que produzia, com métodos ilegais, como grampos clandestinos, vários de seus escândalos. Para evitar a convocação de Civita a Brasília, onde passaria pelo constrangimento de depor diante de uma CPI, Fábio Barbosa apelou até mesmo ao ex-ministro José Dirceu – alvo preferencial de Veja nos últimos anos. E usou a doença de Civita como argumento.
E agora, Gianca?
É nesse ambiente conturbado que Giancarlo Civita, filho mais velho de Roberto, sem nenhuma experiência na área jornalística, e com fama de playboy, assume o comando da editora. Uma mudança que lança dúvidas sobre o futuro da Abril. Na área editorial, a corrosão da credibilidade e a guinada à direita radical afugentaram leitores – especialmente aqueles mais politizados. No mundo político, o ocaso do PSDB em São Paulo, que perdeu a prefeitura da capital e corre riscos no governo do Estado, também enfraquece uma das principais alianças da Abril. Um dos principais novos negócios, que é a educação e a venda de sistemas de ensino, também depende de uma certa diplomacia política. Por isso mesmo, Fábio Barbosa tem ido com frequência a Brasília, na tentativa de sinalizar que é um homem de paz.
O maior desafio de "Gianca", no entanto, será definir sua própria linha editorial na Abril. Nos últimos dez anos, com Roberto Civita tomado pelo ódio e pelo preconceito, a área editorial de Veja, principal revista da casa, assumiu essas feições. Há ali os que realmente odeiam, como Reinaldo Azevedo, os que fingem odiar, como Augusto Nunes (que até poderia amar o PT, se fosse o caso), e os fiéis devotos da ideologia abriliana, como Eurípedes Alcântara, diretor de redação de Veja.
Se Gianca decidir delegar todo o poder à redação, nada mudará. No entanto, sem o trânsito político de Roberto Civita, não será simples converter o ódio e o preconceito ao PT em benefícios econômicos. Se estiver disposto a ouvir Fábio Barbosa, haverá uma possibilidade real de maior equilíbrio. E há ainda uma terceira hipótese, que é a de que o príncipe herdeiro imprima sua própria marca editorial a um grupo ainda influente, mas que enfrenta vários desafios simultâneos: a transformação profunda da mídia, a mudança tecnológica e a própria conscientização dos leitores, que rejeitam a manipulação.
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