Sem dinheiro público e sustentado pelos próprios participantes, bairros marcados pela violência em Belém e Ananindeua recebem oficinas de grafite, cultura hip hop, literatura marginal, trançado de cabelo afro, programas em rádios comunitárias e ciberativismo. Crianças e adolescentes são o alvo principal, diz o educador social Preto Michel, de 35 anos e pai de um adolescente de 17.
Rogério Almeida e Daniel Leite Júnior*
Belém - 31 de março, sábado. Tempo de chuva no Pará. As águas deram uma trégua. Ainda não fechou o verão. O sol ilumina a Praça Lauro Leite, a única do bairro da Guanabara, município de Ananindeua, região metropolitana de Belém. Trata-se de um território marcado pela violência. O município integra o quadro de cidades mais violentas para a juventude no país. Nela são mortos 199 jovens em cada 100 mil, indica relatório sobre o assunto organizado pelo Ministério da Justiça e o Instituto Sangari em 2011.
Apesar de contribuir de forma decisiva para a saúde do superávit primário do país, por conta do extrativismo mineral, o Pará é um colecionador de índices sociais negativos. No assunto violência ocupa o topo da pirâmide. No caso de homicídios, o estado é o terceiro lugar no ranking nacional. O crescimento foi de 273% em 10 anos (1998 a 2008). Na região Metropolitana de Belém, esse índice atingiu 189,3% em 10 anos. Ficando atrás apenas de Salvador e Curitiba.
Ananindeua nasceu em dezembro de 1943, a partir da Lei Estadual nº 4.505. O nome da cidade é de matriz tupi. Faz referência a uma árvore, Anani, que produz uma resina usada para lacrar fendas de embarcações. Pela segunda vez Helder Barbalho administra a cidade. Trata-se do herdeiro político do cacique Jader. O município é o segundo do Estado em população. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 indicam que a população é de 471.980 mil habitantes. O comércio e a prestação de serviços dinamizam a economia. Assim como Belém, a cidade experimenta uma verticalização e padece de um trânsito caótico.
Algumas ruas separam a Praça da Guanabara da BR 316. A rodovia serpenteia a região Metropolitana de Belém. Os indicadores de acidentes com morte são alarmantes, o que alçou a rodovia a local de destaque nacional como uma das mais críticas. Parte do Parque do Utinga, responsável pelo abastecimento de água de Belém fica próximo à praça. O local tem sido usado para desova de cadáveres, informa dona Mercês Bernaldo, 58, moradora do bairro. Ela reclama que a violência tem crescido muito. E que o poder público não confere a devida atenção ao lugar, que tem se transformado em um lixão.
Cultura para a cidadania
No último dia do mês de março, data do golpe militar que estabeleceu a ditadura no país, a praça foi ocupada por vários coletivos que militam na área da cultura, para a realização do 3º Mutirão Cultural. O objetivo do evento é afirmar uma identidade de matriz africana, e provocar a reflexão sobre cidadania. Cospe Tinta, Casa Preta, Traumas Vídeos estão entre os animadores. Oficinas de grafite, cultura hip hop, literatura marginal, trançado de cabelo afro e comunicação são alguns eixos do trabalho. No item comunicação a turma colabora com programas em rádios comunitárias e ciberativismo com a produção de blogs e outros conteúdos.
O universo marginalizado é o mais recorrente quando a pauta dos jornais lança luzes sobre as realidades que conformam as periferias da metrópole Belém. No entanto, de forma silenciosa, jovens organizados em vários coletivos do campo da cultura pop mobilizam esforços em realizar ações nas baixadas da capital do estado e região Metropolitana. Baixada é como é nomeada a periferia aqui. Nestes tempos de intensa chuva parte fica submersa.
O bairro da Guanabara é o terceiro a realizar o evento, que alcança pessoas de todas as faixas etárias, mas prioriza crianças e adolescentes. Antes receberam a manifestação o bairro Tapanã e a Terra Firme, em Belém. Esses bairros são considerados como “zona vermelha” pelas autoridades responsáveis pela segurança no estado.
O Mutirão é organizado a partir de uma ação coletiva das pessoas envolvidas. Não há recurso oficial, informa Preto Michel, um dos ativistas que ministra oficinas de grafite e literatura marginal. “A gente faz contato com o pessoal da quebrada, acerta horário, local, o material necessário, e cotiza”, esclarece Michel.
Conforme o educador social, o projeto dos coletivos vai se estender por todo ano de 2012. “Tudo tem sido registrado em foto e vídeo”, conta Michel, que espera apresentar o resultado no fim do ano com a realização de um grande evento.
No Guanabara a sede do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) serviu como quartel general para a realização das oficinas de hip hop e grafite. A casa é arrumada. Possui umas seis salas. Funciona durante toda a semana. Tem uma piscina no quintal. Integra a Secretaria de Ação Social da Prefeitura.
Eram umas 10h da manhã quando aportamos na casa. Manoel Domingos, um negro de 31 anos, segundo grau completo, evangélico ministrava aulas de hip hop. “Já fiz muita besteira. Fui pichador e perdi muitos amigos para a droga ou o crime”, explica o educador que é segurança da Igreja Universal, mas frequenta a Igreja Quadrangular.
O som era baixo. Os\as meninos\as de 11 a 16 anos exercitavam na varanda. Todos devidamente arrumados. Uns 20. Samuel Dantas tem 13 anos. É estudante da Escola Municipal Heronildes Frota de Aguiar pela manhã e à tarde pratica capoeira, natação e hio hop. Tem preferência pelo último item.
Domingos tem desenvolvido oficinas de forma sistemática desde o ano passado nas sedes de vários Cras em bairros considerados de risco. “Tudo começou na rua mesmo. Depois que surgiu o convite da prefeitura de realizar a ação nas sedes dos Cras” narra Domingos. Ele trabalha com um universo aproximado de 140 crianças e adolescentes na faixa etária de 7 a 18 anos em três locais considerados de risco: Icuí, Maguari e o Conjunto Júlia Seffer. Todos localizados em Ananindeua. O professor explica que a motivação do trabalho é poder ajudar outros jovens.
Parede para a liberdade de expressão
Faz 10 anos que Preto Michel milita como educador social. O nome de batismo é Michel Sarmento, tem 35 anos, é pai de um adolescente de 17. O nome foi uma homenagem ao ídolo pop Michael Jackson. Traja bermuda, tênis e camisa larga, como indica a etiqueta da cultura hip hop. Na noite anterior havia recebido uma homenagem de uma ONG de Belém pela primeira década dedicada à ação popular. Parecia cansado.
Na mochila os sprays. Na outra mão o balde com tinta branca. Ajudo a carregar o balde. Ele divide o grupo em equipes de cinco. A gurizada parece ansiosa para iniciar os trabalhos. “Tio, quando a gente começa a pichar, interroga um mais afoito”? Michel esclarece: primeira lição - grafite não é pichação. O sol era forte. Mas, a meninada não arredou o pé. Tudo é muito rápido. O educador indica os passos iniciais, como retirar o gás do spray. Demonstra a técnica. Depois pede para que cada um pegue um suporte e faça o mesmo.
Antes de iniciar os trabalhos as crianças e adolescentes usam a tinta branca para pintar a parede. Em seguida o instrutor abre o desenho, e vai dando dicas de como manusear o recurso do grafite. Os\as meninos\as alternam no protagonismo para a produção do desenho, que aos poucos vai ganhando forma. Isso sugere a participação de todos no processo de produção. Cada um com a sua colaboração. Um dos garotos parece mais habilidoso. É alvo de brincadeira dos colegas e adultos que acompanham a oficina: “nunca pichou uma parede”. Todos riem.
O mais novo tem 11 anos. É negro. Tem quatro irmãos. O irmão mais velho de Bruno de Oliveira tem 18 anos e desistiu de estudar. O caçula tem seis anos. Ele mora numa ocupação chamada Mariguela, referência ao ativista comunista nascido na Bahia. O pai é pedreiro e a mãe é diarista. A região é considerada barra pesada. O educador Domingos conta que o local onde o garoto mora é de risco, marcada pela presença do tráfico. E que a situação da moradia é precária.
Nas baixadas da região Metropolitana a arquitetura de madeira domina a paisagem. É recorrente situações de incêndios por conta da instalação elétrica improvisada e acidentes domésticos. Por conta da ausência de creches, é comum o filho mais velho “cuidar” dos menores. A obra coletiva se encerra. É um livro. Ao centro a mensagem: “Educação é família”.
Cabana FM – 10 anos de luta pela comunicação comunitária
Na praça as pick ups ecoam canções que buscam provocar a reflexão do povo da baixada. O evento coincidiu com uma ação da prefeitura para a prestação de alguns serviços. A banca da literatura marginal está montada. Quem quiser pode apanhar qualquer livro e ler. Entre as obras um clássico da pesquisa na Amazônia de autoria do professor Vicente Salles, O Negro na Amazônia.
Lacrada e fechada em várias ocasiões, coincidiu de ser o aniversário de 10 anos da Cabana FM, no dia 31. A emissora é comunitária. Ela fica perto da praça. Funciona na parte superior de um sobradinho. Há um ano conseguiu ser reconhecida pelo Ministério das Comunicações. Uma escadinha em espiral leva até o estúdio. O espaço é apertado.
O nome da emissora é uma referência ao movimento da Cabanagem (1835-1840). Insurreição popular que conseguiu tomar o poder no século XIX no Pará. Chapéus de palha estão sobre uma mesa. O chapéu de palha é ícone de representação do movimento. É perto de meio dia. O casal Margalho e Laélia Brito apresenta o Raízes Radicais, programa de reggae. No dial Erick Donaldson, uma referência do gênero, que vira e mexe baixa em São Luís para apresentações, e faz escala em Belém.
A emissora comunitária funciona na frequência 87,9. E pode ser acessada via net. http://cabanafm.com.br/. Uma trupe de crianças e adolescentes toma de assalto o estúdio. Gilvan Souza, que apresenta o programa Revoluson, ministrou uma oficina. São umas 15 pessoas. Antes da explicação de como funciona a emissora e as entrevistas, uma radionovela sobre violência contra as crianças faz as boas vindas da casa. A radionovela é uma produção da ONG Rádio Margarida, especializada em produção de conteúdo voltado para os direitos das crianças e adolescentes.
Praça ocupada e a calda longa - as meninas que realizam a oficina de trançado afro chegaram atrasadas. As 18 pessoas que esperavam foram embora. Elas usam os espaços da própria praça e começam a trançar o cabelo de quem se interessa. Na tenda das pick ups camisetas são comercializadas. Assim como os muros grafitados, elas exaltam a cultura de matriz africana ou signos do movimento hip hop. Na cidade existem várias grifes das baixadas.
A produção é do coletivo Cosptinta. O pessoal da Traumas Vídeos faz o registro audiovisual. São jovens da classe média que acompanham o universo do movimento. O blog (http://traumasvideo.blogspot.com.br/) da produtora independente informa as pessoas que integram o coletivo. Caio Romano cuida da fotografia publicitária, enquanto Júlio Sodré zela pela produção executiva e Michel Nôvo trata da edição.
Um primeiro olhar sobre os subterrâneos do que vem acontecendo em inúmeros momentos e locais da cidade, faz-nos lembrar das reflexões do geógrafo Milton Santos, numa obra que trata sobre globalização.
O “negão” laureado com o título de doutor honoris em vários países alertava que, uma nova civilização pode emergir a partir das formas de solidariedade do universo periférico do capitalismo. Parece que a marcha já deu os primeiros passos.
* Rogério Almeida é professor da Universidade da Amazônia (Unama) e coordenador do projeto de extensão Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente; Daniel Leite Júnior é estudante de do 3º período de jornalismo da Unama e extensionista da Agência Unama pelo Direito da Criança.
Repostado do Portal Carta Maior (06/04/2012)
Um comentário:
Querem conhecer um pouquinho mais sobre o atual governador do Estado e representante maior do PSDB e desse capitalismo esclerosado?? Acessem o blog A Perereca da Vizinha, da jornalista Ana Célia Pinheiro e conheçam um pouco mais sobre quem é realmente o titular do governo atual. Coisa de quadrilha organizada!
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