Por Demian Melo
No dia 29 de março deste ano cerca de trezentas pessoas reuniram-se
na frente da sede do Clube Militar para protestar contra um evento de
exaltação dos 48 anos do golpe de 1964 e da ditadura. O resultado pode
ser visto nas cenas gravadas pelos próprios manifestantes e que estão
circulando pelas redes sociais e também nos sítios dos jornais. A
repressão por parte da Polícia Militar, que disparou bombas contra
manifestantes e utilizou até uma arma de eletro-choque para dispersar e
intimidá-los, marcou aquela tarde de quinta no centro da cidade do Rio
de Janeiro.
Menos de dois dias depois, o jornal O Globo – um dos
protagonistas do golpe de Estado responsável por mais de vinte anos de
ditadura no país – nos trouxe mais um artigo do historiador Daniel Aarão
Reis, do prestigiado Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense.
No texto é reproduzida parte das idéias que o pesquisador vem
divulgado há mais ou menos uma década em livros, artigos em revistas
acadêmicas ou de divulgação científica, jornais e outros veículos. Sua
sedutora tese é a de que devemos entender que, ao contrário de um certo
“senso comum”, a ditadura civil-militar de 1964 teve respaldo na
sociedade. Em toda a produção recente do pesquisador ele reprisa a ideia
de que a sociedade apoiou o regime autoritário e que, por isso, devemos
ser mais cautelosos em colocar a “culpa” daqueles anos terríveis apenas
nos “militares”. Afinal, não é possível “vitimizar a sociedade”, como
gosta de escrever Daniel.
É simplesmente insólito ter de lembrar ao ex-guerrilheiro –
supostamente versado nas ciências sociais – que essa tal “sociedade” não
é algo homogêneo, nem deve ser analisada por historiadores como se
fosse uma pessoa, que em bloco teria apoiado (ou não) a ditadura. Em
1964 o Brasil era uma sociedade divida em classes sociais, seguiu e
segue dividida. E como nos ensina outro especialista na matéria, Renato
Lemos, historiador da UFRJ, é necessário ter em conta a responsabilidade
dos agentes no processo político brasileiro, pois não é possível
esquecer que houve os que deram o golpe e os que sofreram, os que
torturaram e os que foram torturados, os que mataram e os que morreram.[i]
Fazer longos relatos sobre o apoio de “civis” a ditadura, lembrando das
marchas pelo golpe, ou qualquer outra manifestação de apoio “civil”
àquele regime, apresentados de maneira unilateral e convenientemente
esquecendo que apenas os setores pró-ditadura podiam se manifestar
apenas obscurece que uma parcela da sociedade golpeou o restante dessa
mesma sociedade.
Criar essa fantasia de que “a sociedade apoiou o autoritarismo” não
nos ajuda a identificar quem, de fato, apoiou e foi responsável por
essas ações. É necessário entender o sentido da ditadura, suas relações
com o contexto latino-americano e, mais que isso, seu sentido de classe.
Como fica claro no belíssimo documentário Cidadão Boilesen, de
Chaim Litewski (Brasil, 2009), os “civis” envolvidos com a ditadura são
pessoas com endereço, CPF, identificáveis muito mais como pertencentes a
uma classe social que (é difícil provar o contrário) foi a principal
beneficiária daquele regime de exceção que inaugurou a flexibilização
das relações de trabalho (com o fim da estabilidade por tempo de serviço
nas empresas privadas). No mesmo sentido seguem as já clássicas obras
de René Armand Dreifuss (1964, a conquista do Estado, de 1981) e de Moniz Bandeira (O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil,
já em sua 8ª edição de 2010), que provam com detalhes como aquele
regime foi gestado de forma a promover os interesses de expansão
capitalista no Brasil.
O golpe foi, de fato, civil e militar. Mas a artimanha de Aarão Reis
procura transformar a todos os brasileiros em civis, apenas porque
contrapostos aos fardados – aliás, uma visão tipicamente militar –, para
cancelar o abismo social real que separa – e ainda separa – as classes
sociais, dentro e fora das casernas. O golpe foi civil e militar, sim,
mas porque gestado nas entranhas faustosas de setores da grande
burguesia brasileira, aliada a setores militares, com o atencioso apoio
estadunidense. Empregar de forma tosca as noções de “civil” e de
“sociedade”, ou mesmo “apoio social”, impede a compreensão de uma das
páginas mais lamentáveis de nossa história recente.
A ditadura não foi só um regime de militares, que serviu
genericamente apenas aos interesses da caserna, até porque muitos
militares que defendiam a legalidade foram cassados. Alguns oficiais,
artífices de 1964 e do regime que se sucedeu, eram também empresários e
envolvidos com os interesses mais internacionalizados do capitalismo,
como é o caso notório de Golbery do Couto e Silva e demais membros do
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade fundada em
fins de 1961 – após a posse de Jango – que organizou, mais do que uma
conspiração, um projeto de classe que tomou o aparelho de Estado em
1964. Sem dúvida, não foi só esse grupo que conspirou e ajudou a
derrubar a democracia em 64 – pois a frente golpista envolveu toda sorte
de reacionarismo existente na sociedade brasileira, desde a TFP até
latifundiários arcaicos e pequenos comerciantes em pânico com a possível
ascensão do “comunismo”. Mas não é difícil constatar que esses últimos
grupos não tinham um programa de poder – como o IPES formulou bem antes
do golpe – embora contribuíssem para dar volume e formar a “onda” da
contra-revolução.
Este é mais um capítulo de uma polêmica que alerta para o sentido que
tais proposições encerra, polêmica travada desde 2004, quando estas
teses de Daniel Aarão Reis, lançadas quando se “comemoravam” os 40 anos
do golpe, receberam forte ressonância nos órgãos da imprensa brasileira –
essa mesma imprensa com seus esqueletos no armário não só do golpe, mas
da montagem do aparelho terrorista de tortura e perseguição política
naqueles anos.
Afinal, o que tem mobilizado a juventude e velhos combatentes da
esquerda brasileira em favor da investigação sobre os crimes da ditadura
é o fato da Lei de Anistia ter perdoado os crimes hediondos cometidos
por agentes do Estado brasileiro. Concepções como esta que estamos
criticando aqui não fazem mais do que realizar uma espécie de “anistia
historiográfica” da ditadura militar, culpabilizando toda a sociedade
brasileira por aqueles crimes e desfazendo os elos reais entre certos
militares e certos setores civis.
Talvez entendendo isso possamos continuar a protestar, não só contra
os esclerosados agentes da repressão, mas também contra os capitalistas
que foram seus principais beneficiários e fizeram fortuna com a brutal
exploração da classe trabalhadora em mais de duas décadas.
[i] LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi, Revista do Programa de Pós-Graduaçãoem História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, n.5, set.2002, p.305.
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